sábado, 31 de março de 2012

(2012/339) Uma súbita revelação sobre vaginas: ou, por que mulheres são o centro do mundo

1. Já havia ouvido falar sobre "isso", esse Monólogos. Julgava que fosse alguma coisa do ramo do humor pouco criativo - um tipo de humor que não me atrai muito. Mas estava errado. Monólogos da Vagina não tem nada de "humor". Oh, sim, você rirá, se divertirá até. Mas não, não é humor. É uma viagem emocionante, triste, deliciosa, tudo junto, cada coisa em seu momento. É obrigatório.

2. As quatro primeiras partes são sublimes. Além do talento de quem os escreve e interpreta, encena, Eve Ensler, os monólogos são simples, diretos, descritivos, belos. São uma aula para "machões" inúteis, um conforto para homens compreensíveis e "inteligentes", um louvor à vagina, a essa coisa natural e bela. Mas, acima de tudo, uma oportunidade de re-encontro de mulheres consigo mesmas, em sua profundidade orgânica de fêmeas.

3. Mas na quinta parte, algo aconteceu comigo. Uma revelação me bateu o peito, como o voo de um pássaro contra o vidro da loja, alguma coisa entre lancinante e inamovível...

4. Cada vez mais pressinto que a chave para nos conhecer, a nós humanos, e com profundidade, eu digo, e não em livrinhos de cem páginas de psicologia barata e auto-ajuda em venda casada com jornais de domingo, que a chave para nos discernir em todos os outros campos da vida é a biologia.

5. Eu estou cada vez mais convencido, e cuido que não morrerei sem que antes "descubra" se estou certo, de que tudo em nossa vida: religião, sentimentos, política, esportes, tudo, absolutamente tudo, em nossa vida e existência tudo tem fundamento biológico. Não, senhores, não se trata de um reducionismo biológico, mas da existência humana como tradução não-biológica (mística, agonística, erótica, retórica) de pulsões e movimentos profundos da biologia - mais do que do corpo humano, mas mais profundamente ainda, movimentos da máquina viva que somos, de seus níveis pré-corporais, dos sistemas que o constituem, dos seus líquidos inorgânicos, em efervescência agora viva.

6. E, então, a última parte dos Monólogos...

7. Eu tenho a consciência masculina, aflorada à superfície com força de tempestade atlântica, de que estou preso biologicamente àquela "coisa", metonímia avassaladora e hipnótica de minha vocação de marido e companheiro. De algum modo, somos, homens e mulheres, coisas que crescem em volta de nossos próprios órgãos de vida e sexo. Nós, pessoas, somos, de certa forma, coadjuvantes dessa dança mais imediata - o sexo e a vida. Não, não foi ainda isso que descobri no último monólogo de Eve. Isso eu já sabia há anos, com a consciência dos dias tranquilos à sombra da Palmeira que é Bel...

8. Senhores, maridos são como machos de saúva - são pênis alados. Não, nem isso: testículos alados! Pênis são instrumentais, apenas - a coisa mesmo são os testículos. Daí que eu compreendo, ah como eu compreendo, que meus joelhos tremam diante de Bel, um tremor de milênios, tremor evolutivo e programático, meus olhos ligados o tempo todo à máquina da vida. Homem, estou hipnotizado biologicamente pelo ímã natural a que devo me prender - e isso vem lá de dentro de minhas profundezas cérebro-genitais...

9. Ela, não. Não a mulher. Ela está ligada mais diretamente a seu próprio útero. Seu fim não somos nós, homens. Somos, em termos biológicos, meio, instrumento, modus operandi. O fim a que elas estão biológica e hipnoticamente ligadas é aquilo que deve sair de seus úteros - não aquilo que entrará lá. São seus filhos... Homens têm seu fim nelas, naquela coisa que elas têm, naquela coisa dentro delas. Elas, da mesma forma. Assim, elas, em nível biológico, são o centro que a tudo atrai para si, o Sol, em torno do que tudo gira - e isso não é poesia! Eu, satélite, reconheço o astro que me mantém em sua órbita.

10. Eu compreendo que eu sinta compulsivamente esse sentimento de ser dela, de viver à luz e à sombra desse fato. Mas, ao assistir à última parte do Monólogos, percebi que ela não tem a mesma natureza biológico-psicológica que eu, que o jogo, então, é descasado, que é isso que faz de mim, homem, um como que pequeno cão a implorar carinho: filhos, depois, mãe, depois, agora, aqui, já, ela, e só ela.

11. Mas ela, elas, elas, não. É até o seu ciclo! Suas preparações alquímicas... Ah, quanto ela deve estar mais próxima da terra e dos mecanismos biológicos do que eu... E como posso eu, esse ser psicológico, biologicamente movido pelas pulsões organímicas do corpo, competir com útero, trompa e vagina?

12. Ah, sim, claro. As infertilizações artificiais que praticamos, depois da ninhada medida e pesada. Isso faz, naturalmente, do sexo, um brinquedo e nada mais. Não resta dúvida que aqui fica claro que a antropologia e a sociologia podem alterar as coisas que a biologia pensa dominar. Sexo, doravante, senhores, só por diversão. Todavia, a biologia não sabe disso, e, para além de nossa sensação de controlar o processo, somos é controlados, ainda, enganando-nos de que a coisa deixou de ser o que sempre foi, só porque fomos ao médico e demos alguns nós em tubos e conexões periféricas...

13. Aqui, agora, ainda sou eu, programado para pôr-me aos pés, entre as pernas, lá dentro. Por sublime que possamos fazer emergir esse momento, por feérico e poético, é biológico, é pulsão, é hormônio. E, no caso delas, lá estão os mesmos mecanismos, ignorantes de que a fábrica está fechada, de que o próximo vagão a chegar à estação não traz senão sementes adormecidas, enganando-as, às duas, de que se trata do que sempre foi - preparar a nova geração...

14. Acho que a natureza nos dotou de sonhos diferentes, nós e elas, presos por cordões biológicos que se tocam, mas que não constroem a mesma corda, conquanto seja, ao final, a mesma sinfonia. Somos, nós homens, hipnotizados, em todos os sentidos, por elas, e, nelas, pelas vaginas. Daí advém todo o mais: o belo, o bom, o fetiche, a transgressão, a perversão, a violência. Tudo. Tudo gira em torno delas.

15. Mas, quanto a elas, acabo de compreender, seremos, sempre, a despeito das palavras, coadjuvantes.

16. Que o amor, enganando-se de ator, cuidando ser fenômeno, saiba compreender que também aí há de tudo suportar, além de tudo querer - suportar até essa revelação dolorosíssima desse desnível de inexorável acorrentamento...







OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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