terça-feira, 27 de março de 2012

(2012/328) Porque não sou um profissional da fé

1. Deve-se levar a sério o "porque" junto. "Porque", aí, é uma explicativa. O que vem dito depois da oração que ela abre, ou seja, abaixo, explica-se pelo que disse no título: não sou um profissional da fé. E, porque não sou um profissional da fé, posso ter certas liberdades.

2. O profissional da fé, não. Ele não tem liberdade. O que ele deve dizer está preso ao seu "salário". Não se trata aqui de denunciar quem arranque dinheiro da igreja. Trata-se apenas de explicitar a armadilha terrível que é viver de dizer coisas sobre Deus e a fé e ser pago para e por causa disso.

3. Qual a armadilha? Aquela em que estão caídos uma esmagadora maioria de pastores e pastoras - mas não podem confessar. É a armadilha de perceberem-se vítimas da doutrina. Eles sabem o embuste de muito do que falam e pregam, mas não podem desdizer, não podem despregar: são "pagos" para isso. Têm famílias! Mulher e filhos a dar de comer...

4. Quando a Teologia crítica protestante separou-se da igreja, isso foi uma tragédia - e não para a teologia crítica, certamente, mas para a igreja. Ela perdeu a capacidade de auto-avaliar-se. Ela só pode repetir cada vez mais alto tudo quanto diga e disse. Não pode voltar atrás.

5. E eu sinto o sofrimento de muito pastor e pastora. O momento em que se olham no espelho é terrível. Alguns sabem até que mentem para si mesmos, mas não sabem como sair da situação sem radicalidade.

6. Não podem simplesmente dividir com seu público a sua dor e confusão: isso os tornaria meros mortais.

7. Não podem simplesmente pedir um ano sabático - a máquina da pregação tem de ser mantida como a fornalha do trem.

8. Não podem ir embora, porque sua vida é o que fazem.

9. Mas o que fazem os acorrenta como um polvo vivo e gigante.

10. Eu tenho pena dos profissionais da fé que caíram na armadilha. Sincera dó.

11. Os "convictos", não. Para esses, a cura está distante. Mas, sob seu registro, estão saudáveis. Não diria o mesmo de suas ovelhas, mas eles, eles, sim, estão saudáveis. Hígidos.

12. Minha pena vai para os outros. Os doentes. Doentes de si. Carrascos de si. Cada palavra que proferem de púlpito são como que gostas de plástico quente a tocar-lhes a língua. Domingo a domingo. Alguns já se tornaram zumbis. Não há mais carne a queimar. Só a máquina homilética autômata dominical.

13. O sistema não prevê alternativas para esses casos. A pastoral é perversa. Não permite que se descreia - porque descrer é pôr tudo a perder. Deve-se estar "saudável". Deve-se crer categoricamente.

14. É preciso mais: é preciso dizer que a fé é racional. É para isso que servem os teólogos profissionais da fé: para garantir a argamassa, para dar liga à massa, para pôr a cobertura no bolo.

15. Nos bastidores da fé, todavia, milhares de homens e mulheres se consomem na dor e na dúvida, tendo que subir em púlpitos mentirosos todos os dias, e fingir o que não são, e dizer o que não vai em suas veias.

16. Para esses, o sofrimento é enorme.

17. Gostaria de lhes dizer que esse seu sofrimento é terapêutico e salvífico. Que o fato de sofrerem os purifica desse pecado.

18. Mas não posso. Porque não é. nem terapêutico nem salvífico.

19. Que nome daremos a esse sofrimento?

20. Nego-me a ser ainda mais cruel.

21. Mas as denominações podiam ser mais amorosas. Podiam compreender as crises pastorais, em lugar de camuflá-las.

22. Nisso, sou mais feliz. Porque não sou um profissional da fé. Eu posso dizer da fé o que minha consciência me diz. Eles, não: eles têm de fingir que acreditam, eles têm de repetir o script.

23. Sim. É patológico. E eles deveriam ser médicos.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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