domingo, 18 de março de 2012

(2012/305) Sobre More Than Belief, de Manuel A. Velásquez - início de uma análise crítica

Peregrinos em Tepeyac, México, na festa de Nossa Senhora de Guadalupe 
1. Situemos a questão: sou professor do Departamento de Pós-Graduação (Mestrado Profissional) em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória. Esse Mestrado é um curso novo - inaugurado ano passado, 2011, e é uma das razões diretas de minha contratação também ano passado. Seu Diretor, Wanderley Pereira da Rosa, com apoio do corpo docente, tem planos de chegar brevemente ao Mestrado Acadêmico e, então, ao Doutorado. Há muitíssimo trabalho pela frente - e em nosso colo.

2. Novo, seu corpo docente decidiu assentar discussões sobre a linha de pesquisa de médio e longo prazo que adotará, bem como, em sentido mais amplo, que conceitos relacionados à religião o departamento manejará. 

3. Foi constituído um grupo de discussão, formado pelos professores do departamento e liderado por seu Coordenador, Julio Paulo Tavares Zabatiero. Adotou-se um livro, base para a leitura e reflexão, tendo em vista aquele objetivo. Está pelando de quente - é de 2011: Manuel A. Vásquez, More Than Belief - a materialist theory of religion. New York: Oxford, 2011.

4. Para amanhã, temos a primeira reunião, na qual discutiremos a "Introdução", p. 1-17. Pretendo - se me for possível - construir em Peroratio uma série de análises do livro, ainda que seja arriscado o que pretendo fazer - comentar o livro parte a parte, à medida que formos avançando nos capítulos.

5. É arriscado, porque a crítica de uma obra se faz ao final. Mas, na prática, fazemos a crítica ao longo da leitura, e só a assentamos como completa ao final. Assim, minhas críticas aparecerão como assentadas, ao longo do período, mas, na verdade, serão, sempre, provisórias. Como são as que adiante esboço - conquanto seja o tom geral sempre muito retoricamente contundente.

6. Correrei o risco de me desdizer, depois. Assumo. No fundo, é uma necessidade pulsional que me leva a escrever - e agora, sem esperar por amanhã. Todavia, sei que a reunião em si poderá alterar, mais ou menos, mais ou menos elementos de minha análise - isto é, alterar para mais ou para menos a intensidade com que critiquei esse ou aquele elemento de More Than Belief

7. Posteriormente às reuniões, incluirei nas análises seguintes eventuais correções de minha posição anteriormente assentada - ou, ao contrário, a reforçarei.

8. O Google Books disponibiliza parte do livro para acesso online. Se você deseja ler a Introdução (totalmente disponível), basta clicar aqui. Alternativa, pode-se fazer como a Unida fez - adquiriu um volume para cada professor, importando-os.

9. Bem, eu não gosto do trabalho "jornalístico" que um resenhador tem que fazer. Ele é necessário, mas chato. Mas deixe-me fazer um breve apanhado da Introdução. Basicamente, o autor fala dos capítulos que escreverá - são 11 -, divididos em três partes não proporcionais (I: 1-7; II: 8-9 e III: 10-11). Um segundo volume é prometido, onde, é provável, "corrija" a desproporção das partes do presente volume.

10. Vásquez defenderá o que chama de "realismo cultural", mais ou menos baseado, ele argumenta, em Durkheim e definido, agora sim, por meio de uma citação de Margolis, nesses termos: "o mundo emergente em que nossa competência cognitiva toma forma... é bem real, tão real quanto o mundo físico do qual ele 'deve' ter evoluído" (p. 6). É por isso que classificará sua abordagem à religião como "materialista". Não, não é por causa de Marx, talvez, muito pelo contrário.

11. Trata-se, todavia, de um "materialismo" não muito "material" - porque parece que Vásquez tomará as práticas e os discursos dos "corpos" - ele gosta do termo - religiosos como se dão. Não promoverá reduções eidéticas - à moda de Mircea Eliade, que por três significativas vezes ele cita para dele se diferenciar. Sua moda é mais para Bourdieu e Foucault - ele o dirá na p. 10 -, e Wittgenstein - ele o confessara na p. 9.

12. A religião é tomada como "dada", porque há práticas, discursos e instituições relativamente estabilizados (p. 9). Deve-se, então, aproximar-se desse fenômeno por meio da "descrição" dessas práticas, desses discursos, dessas instituições. 

13. As "narrativas" dos especialistas sobre esse fenômeno comporão um conjunto de propostas que permanecerão igualmente disponíveis no "mercado acadêmico". Com o tempo, uma ou outra se revelará mais "útil", e dominará a savana, ou, não, pode ser que vários teóricos permaneçam igualmente disponíveis, sem nenhum "winner" muito claro (p. 10). Eventualmente, não é que as demais se revelarão totalmente inúteis - talvez apenas parcialmente úteis. É assim que Vásquez descreve o dia seguinte ao do trabalho do acadêmico, empregando inclusive a palavra "evolucionária". Até quando vai tratar do trabalho do pesquisador, parece que Vásquez mantém-se fiel a sua perspectiva não-fundacionalista: tomar as coisas como estão aí (cf. p. 14), mas sem perguntar o que é exatamente isso, mais descrever e usar, do que entende e compreender.

14. Sua abordagem é dita não-reducionista. E ele insiste nisso. Mas não é não-reducionista em sentido eliadiano, que pretenderia encontrar uma essência para a religião. É não-reducionista porque toma a religião como algo dado, que não pode ser reduzido às explicações, por exemplo, fenomenológico-idealistas, ou críticas, essas, à moda de Marx, Nietzsche e Freud. Ela é não-reducionista porque não é idealista - ele argumenta - e porque tomará os corpos religiosos em plena narrativização "pragmática" das práticas religiosas.

15. Eu vejo graves problemas aí. De um lado, o trabalho de campo não é novidade alguma no cenário da pesquisa. A Fenomenologia (da Religião) e a Psicologia Profunda nasceram como tentativas de explicar - além de meramente colecionar e descrever - inúmeros documentos religiosos, os quais vieram à tona como efeito indireto do avanço ocidental sobre os demais povos. Dos milhares de testemunhos colecionados, evidencia-se, de um lado, a Babel dos olhos, e, de outro, a necessidade de dar um sentido ao fenômeno que, Vásquez reconhece, é estável.

16. O que a Fenomenologia da Religião faz é tentar encontrar esse sentido. Não posso concordar com Vásquez na crítica de que Eliade seja "idealista". Seus estudos sobre Templo, altar, cosmogonia, são, acima de tudo, estudos de comportamentos "situados", ritualizados, cuja semantização é co-articulada com a própria prática. Por outro lado, como Vásquez pretente explicar que devotos da Virgem de Guadalupe, como ele descreve, façam peregrinações longas a Tepeyac, sem que ele, pesquisador, decida-se a enfrentar o significado que isso tem para elas? Vásquez propõe que o pesquisador da religião seja alguma coisa entre jornalista e contador de histórias? É isso que ele quis dizer quando empregou o termo "story" referindo-se sua própria narrativa, ao seu próprio "livro"?

17. Do mesmo modo, Vásquez fica a dever explicar de que modo é não-reducionista uma metodologia que, diante de abordagens que ele classifica como reducionistas, porque, alega, são reducionistas no nível idealista, apenas inverte a polaridade - assumindo a materialidade da cultura consubstanciada nos discursos, nas ações e nas instituições? Se a abordagem que se esquecera do material é reducionista, porque a abordagem que se esquece do ideal não o é?

18. Nesse sentido, prefiro aproximar-me da religião a partir da ótica "nem idealismo nem materialismo, mas idealista e materialista" ao mesmo tempo, proposta por Edgar Morin (cf. O Método), que, é revelador, Vásquez não cita nem direta nem indiretamente: o nome de Morin não se fará ler em parte alguma da obra. E com isso não fiquei surpreso.

19. Uma ação sem significado não é ação: se não se pergunta pelo sentido que isso tem para quem faz isso, e, se sentido há - e tem de haver -, por meio de que ideias elas se atualizam, não resta outra coisa a fazer senão se considerar que se está diante de uma população de zumbis, que agem de modo automático, mas sem pensar, sem refletir, sem razões fundamentais - sem fundamentos - para o quer que seja que façam. Estamos diante de um estruturalismo mitigado? A presença de Bourdieu endossaria minha percepção? Vai-se à religião popular, dissolvendo-se as pessoas?, ou, menos, entregando-as, acéfalas, às estruturas sobredeterminantes da ação?

20. Temo que, para salvar a materialidade da religião, para salvar os corpos religiosos, Vásquez acabe matando as "almas" - as ideias. E, todavia, sem as ideias, não há cultura material alguma (cf. Morin, O Método 3 e O Método 4).

21. Para encerrar, não foi agradável a leitura, porque a percebi, ao meu juízo, eivada de inconsistências epistemológicas - e as mais graves dentre todas são essas duas: 1. não perceber que chama de não-reducionista um método reducionista, e que, além disso, 2. toma como real a cultura, sem perguntar-se, em nenhum momento, o que é isso para o pesquisador e o que é isso para o "homem de cultura", que, diferentemente do pesquisador, a experimenta sem a questão metodológico-epistemológica que marca o diferencial de aproximação entre viver e pesquisar. Salvo, claro, se, para Vásquez, não há diferença alguma entre viver e pesquisar, e o pesquisador não faz nada de diferente que não o faça o fiel, embora esse esteja "vivendo" e, aquele, "pesquisando". Nesse caso, religião é pesquisa e pesquisa é religião, e ler o livro de Vásquez é a mesma coisa que entrar na procissão dos devotos de Guadalupe, da Virgem de Tepeyac....

22. Minha crítica é pesada. Na prática, inviabiliza a obra como um todo. Vamos esperar para ver. São 17 de 382 páginas. Posso ter-me equivocado. Mas espero com toda a minha sinceridade, que não seja o caso de os montes terem entrado em trabalho de parto e parido um rato...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Anônimo disse...

Osvaldo,
primeiramente, desculpe a brincadeira lá na postagem sobre os livros do Losurdo. Não sei se só publicar o meu gracejo sem nenhum mínimo comentário significou um desagrado seu ou falta de tempo mesmo. De qualquer forma, foi mal se me excedi.
Você se referiu en passant à procissão dos devotos da Virgem de Guadalupe como ilustração, e isso me lembrou uma questão que queria te colocar já há algum tempo.
Nessa questão toda acerca do aspecto epistemológico da abordagem do fenômeno religioso, como ficam as experiências envolvendo manifestações sobrenaturais.
Não digo o tal do "sentir no coração" ou chorar na igreja e dizer que é a presença de Deus, mas me refiro a acontecimentos que nos desafiam a compreensão e que são mencionados como aval da veracidade de um sistema religioso sempre que se tenta opor a ela argumentos racionais.
Também não estou aludindo àquelas lendas que ouvimos serem repetidas aqui e ali, como aquela do assaltante que levou o dinheiro do dízimo que o fiel levava à igreja e, minutos depois, voltou atrás deste em desespero para devolver dando a entender que algo muito horrível lhe sucedera logo em seguida - você já deve ter ouvido essa -, mas a coisas que eu mesmo presenciei, e talvez você também tenha visto aqui e ali.
Coloco para você essa questão porque sempre me é oposta - às vezes por mim mesmo - quando estou me afastando do dogmatismo religioso.
Abraços.

Peroratio disse...

Não, falta de tempo só.

Quanto aos fenômenos que você menciona - não sei. Se tiverem explicação possível, são físicos, logo, não são milagres. Se não tiverem explicação possível, e se não são fraude - duvido a princípio de todos -, então não é caso para entender, nem explicar.

Não reduziria a vida ao que é meramente físico. Mas reduziria o que pode ser explicado a isso.

Na prática, não me meto nisso. E todos que se metem apelam para seres sobrenaturais, mundo dos deuses, anjos, essas coisas. O dia que um olhar pra mim, tocar e disser, é fácil, é só eu apertar assim e pronto, aí da pra discutir - mas no campo do "tem uma coisa em mim que faz, e ela vem do outro mundo", não dá nem pra acompanhar.

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