1. Um ex-aluno, leitor e gentil homem me agradece e elogia por um texto escrito, aquele a respeito da didática do medo. Qual, não lembro? Manda-me, então, o link: (2010/615) Da deseducação cristã - a didática do medo. Como sempre faço, então, reli.
2. Quero acrescentar a ele algumas reflexões - mais argumentos do que alguma coisa a se somar à tese.
3. Começo com o moderno Descartes e seu Discurso sobre o Método. Ao final desse que é considerado um dos marcos da Modernidade, pode-se ler que a firme convicção da existência de Deus e da alma é indispensável para evitar-se o erro que, ele dizia, começava a grassar, de que nada se tem a temer nessa ou na outra vida (Descartes, Discurso Sobre o Método. São Paulo: Hemus, 1978, p. 107). O erro de se pensar não ter o que temer - nem nessa nem na outra vida. Eis a "utilidade", se não de Deus, certamente da fé em Deus - temer.
4. Trata-se aí, de uma questão de "situação", da consideração circunstancial de que a "ordem" social depende desse medo - se não temem os homens a Deus, que segurança haverá nas ruas?
5. Nesse sentido, Nietzsche usa o sinal invertido. Zaratustra se aproxima do funâmbulo caído e alquebrado, que o toma pelo Diabo, vai morrer e tem medo. A reação de Zaratustra, a sua resposta, a essa altura não surpreende mais a ninguém: "pela minha honra, amigo (...) não existe nada daquilo que disseste: não existe o Diabo nem existe o inferno. A tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo, portanto, não receia nada!" (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989, p. 36). Descarte reviraria no túmulo - pudesse.
6. Zaratustra sabe - porque Nietzsche sabe - de que se trata quanto ao Diabo e ao Inferno: condões de controle social. "Não receia nada!" - porque a tua alma desaparecerá ainda mais depressa do que teu cadáver.
7. Finalmente, Saramago e a cena central do Evangelho Segundo Jesus Cristo. Estão Deus, Jesus e o Diabo num barquinho, no meio do mar. A coisa ali se resume a Deus convencer a Jesus a deixar-se morrer na cruz. As coisas que Deus diz que acontecerão aos homens por conta dessa morte são tão terríveis que, diante do desespero de Jesus, o Diabo em pessoa propõe reconciliar-se com Deus.
8. Diante de tão absurda alternativa, Deus recusa terminantemente a proposta do Diabo, sob a justificativa de que sem o Diabo não há Deus. É uma forma romanceada de revelar a psicologia política e de controle de massas da fé cristã. Se não se tem medo de Deus - mas se deve ter! - tem-se medo do Diabo.
9. Os humanos são, aí, tratados como crianças. Deus e o Diabo são bichos-papões disfarçados de doutrina de adultos. Uma neurose, diria Freud - nesse recorte.
10. É por isso que a Modernidade é um desafio para a fé - ela denuncia as estruturas de controle, ela postula a autonomia do sujeito, sua liberdade epistemológica, e isso dá segurança ao sujeito de assumir, para si mesmo, como mitos, aqueles discursos de medo.
11. O problema é que, depois de dois mil anos de papai e mamãe pondo o menino e a menina para dormir, deixando a luz acesa, para afastar o bicho papão que, de todo jeito, volta toda a noite, o menino e a menina não conseguem, com facilidade, dormir sozinhos. Têm medo. O medo de tal modo fixou-se em suas consciências que eles tremem só ao assovio do vento...
12. É como o cão a quem se chutou por dez anos. Dificilmente acreditará que essa mão que se estende para dele cuidar não continua a ser aquele mesmo gesto de terror e dor. O medo está de tal forma enraizado nele que ele não é mais um cão - é um medo com pernas.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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