1. Da questão de Deus se pode tratar de dois modos.
2. De um lado, o modo positivo/negativo. Aqui estão muitas pessoas. Estão os religiosos de modo geral e suas pregações intermináveis. Entre eles, os religiosos, estão os místicos e suas doutrinas disfarçadas em "contatos imediatos", estão os eso e exotéricos, os teólogos clássicos e os filósofos crentes de modo geral (se bem que eu os poderia chamar diretamente de religiosos). Somem-se a eles, agora, os romancistas de todo tipo. No frigir dos ovos, teologia e romance são parentes muito próximos. E, para encerrar a lista, que crio aqui e agora, logo, pode revelar ausências, os ateus, que falam de Deus de modo negativo - um positivo que diz não, ao passo que um teólogo seria um positivo que diz sim. Mas dá no mesmo.
3. Do outro lado, acho que sozinhos, aqueles que se inserem no modo neutro - o modo do não-falar de Deus. O que isso quer dizer? Bem, nos termos que aqui e agora convoco para minha expressão é aquela atitude que sabe que não tem como falar de Deus, que não pode, porque: a) não se sabe sequer se Deus exista ou não (ateus e crentes já decidiram, mas por si mesmos, porque querem assim pensar e com isso se sentem satisfeitos - a despeito disso, a questão está longe de ser resolvida, porque simplesmente não pode ser resolvida [não enquanto uma questão do saber]).
4. b) se Deus existe, o que não se pode "saber" (pode-se crer e inventar para si e para a religião um conjunto positivo de crenças, mas isso nada tem a ver com saber, é crença, é fé, é desejo e necessidade), nada se poderia saber e, logo, dizer dele, salvo, claro, por meio das categorias acima (§ 2), cujo conteúdo discursivo tem a consistência de um mito romanceado.
5. Naturalmente que esse modo de ver as coisas não agrada aos habitantes do § 2. Nada posso fazer a respeito. E, tendo dito isso, digo a que vim.
6. Gostaria de poder falar de Deus com a desenvoltura dos pregadores. Acho que faria sucesso.
7. Eu poderia fazer como os neomegasuperhiperpowerultraplus apóstolospatriarcasbisposxamãspastores e juntar uma boa bolada. Eu teria que negociar alguns valores pessoais, mas a causa justificaria, eu acho.
8. Eu poderia fazer como pastores da resistência, que manejam o Evangelho em rotinas morais, espirituais, terapêuticas, alguma coisa entre filosofia, ética e mística, críticos incisivos do Evangelho de hoje, eles e suas comunidades "esclarecidas"...
9. Eu poderia fazer como C. S. Lewis, falar de Deus meio que às escondidas, como aquelas aranhas que se escondem em tocas, escondidas e, quando passa o inseto, saltam velozes e certeiras. Eu inocularia nas vítimas de meus romances a estrutura narrativa do mito cristão, tornando-o alguma coisa de nosso próprio tempo, fazendo-as absorventes à fé...
10. Eu poderia fazer como os esotéricos e suas certezas iniciáticas, proferidas com tom grave e solene, acompanhadas de ritos peremptórios.
11. Eu poderia fazer como os xamãs e pajés, homens antigos, respeitáveis, sobre cujas almas não caminhou jamais a crítica moderna, e fazer-me crido possuidor do Espírito dos ancestrais...
12. Talvez eu pudesse fazer-me como os pastores mais ou menos tradicionais, cada vez menos tradicionais, é verdade, instalar-me numa boa e grande igreja de classe média alta ou classe A, falar de Deus de modo "inteligente" - a mesma fé de todos, mas com grife.
13. Mas não posso.
14. Não digo isso com orgulho ou vaidade. É tão somente um fato. Uma pedra de mil toneladas. Não é bem um peso - é uma rocha.
15. Não posso mentir para mim mesmo (no meu caso, seria uma mentira). Deus, para mim, é uma questão - um problema. Um problema de não-indiferença. Não é algo que vai para o fundo da gaveta. É uma questão que permanece flutuando na superfície da pele. Mas é uma questão, um problema.
16. Para os demais, é uma afirmação, um "dado" dado. Uma doutrina. Uma certeza (auto-promovida). Uma narrativa. Uma coisa. Alguns dirão - uma experiência (mas disso sabemos tratar-se de Psicologia, tanto a subjetiva [do si] quanto a social, e tratar o problema Deus no campo da experiência é fazer da questão Deus uma questão futebolística, mas sem lhe conceder o mesmo estado.
17. Bem, na prática, a questão de Deus é mesmo uma questão futebolística, de torcida e experiências, de chorar e sorrir, sem tirar nem por.
18. Mas eu não estou tratando do "problema" Deus, aqui, naquilo que a prática social me revela - por esse caminho eu já teria certeza de ser uma completa neurose freudiana e nada mais do que isso.
19. Eu me pergunto, todavia, se para além da neurose freudiana (que está aí), se para além do ópio marxista (que está aí), se para além da projeção feuerbachiana (que está aí), se para além de todas as críticas - e também as minhas - Alguma Coisa, Alguém, me olha. Todavia, precisamente isso, para mim, não é uma questão - mais - existencial: é um problema cognitivo.
20. Como eu disse - é um "problema", tecnicamente falando. Um problema ao qual não me submeto em desespero, a ponto de entregar-me a uma resposta que eu mesmo fabrique, para deleite de minha alma, nem tão angustiante, na maior parte do tempo, que eu não possa suportar sem disfarçar psicologicamente sua condição inamovível de problema.
21. Tillich ensinou-nos a diferenciar Deus de Deus. Deus, enquanto o conteúdo positivo de nossa fé, e Deus, o Ser, Deus-enquanto-si-mesmo. Um, Deus, no outro, um símbolo antropológico e histórico desse Deus.
22. Sofisticado. Mas não há nada de novo aí, em relação à fé clássica, salvo uma tentativa bastante moderna de promover um pouco de sanidade no mundo religioso - porque o resultado a que chegaríamos é de que nossos discursos, doutrinas, credos, são, todos, como disse, Feuerbach, invenções nossas, enquanto Deus-mesmo, inacessível, estaria lá, inalcançável, inatingível.
23. Mas nem ele mesmo creu nisso. Sua última conferência, antes de morrer, abria uma nova página: converter o mundo por meio da História das Religiões! Um homem de fé, em sentido filosófico. Um homem do § 2.
24. Era necessário, Tillich, ter ido mais fundo. Muito, muito mais fundo. Mas, então, serias, ainda, teólogo?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. agora que terminei, vem-me à mente o pensamento de que aqueles habitantes do § 2 vivam a bater um na cabeça do outro com sua fé: as doutrinas são tacapes de homens pré-históricos, clavas com que se dão na cabeça dos outros, que porrete também converte, ou, pelo menos, diminui as próprias incertezas...
2 comentários:
No §20 está lá "entregar-me a uma resposta que eu mesmo fabrique".
E eu fiquei com isso na cabeça: entregar-se a uma resposta que o próprio questionador fabrique. E por que o perguntador faria isso? Por desespero, o desespero com que se submete ao problema "Deus", ao invés de simplesmente ignorar essa questão, porque não pode, não consegue.
Essa conduta de vida é extremamente exaustiva - debater-se com Deus, não com esse(s) das doutrinas, mas com aquele do(s) encontro(s) quando se está engalfinhado com o(s) primeiro(s), se vive e se respira este(s).
Como é difícil andar pelas ruas, olhar no rosto das pessoas que passam ou ficam paradas aqui e ali, e "crer" que estamos todos debaixo do pálio do acaso, e este através de leis físicas cegas!
Há sentido nisso tudo? Lembrei-me de Camus, em "O mito de Sísifo" - não se suicide por ter a sua vida perdido o sentido, porque ela não tem sentido mesmo (ele não escreveu isso literalmente, eu que entendi assim).
Êita que são questões e mais questões que dão um nó na cabeça da gente! Acho que vou dormir!
Luciano, preste atenção no que você mesmo diz, homem! Crer você pode nisso tudo... Não precisa crer no Acaso. Pode crer que Deus dirija tudo. O que você não deve é se esquecer, nem por um segundo, que isso é crença, não conhecimento. Para uma mente crítica, não vai adiantar. Mas dizer que não se sabe não é o mesmo que dizer que não se pode crer. É verdade que chega um dia em que você percebe que a fé era apenas uma escora, como aquelas que se põem para suster lage fresca, recém-batida, e que, depois de firme a lage, se tiram... Mas, enquanto a lage não está firme, p jeito é crer. Será difícil, todavia, mas necessário - e muito - fazer a diferença entre crer, que é "aposta" (pode-se estar erado) e saber... Um abraço.
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