terça-feira, 24 de janeiro de 2012

(2012/074) Sobre dois tipos de leitura que nos apaixonam



1. Há dois tipos de leitura que nos apaixonam, que mexem com nossos instintos.

2. Uma delas é aquela em que encontramos lá, sempre, o que queremos encontrar, o que "já sabemos". Se na nossa cabeça vai "a", então, quando lemos "a", nos identificamos imediatamente com a leitura, nos apaixonamos e entramos em êxtase.

3. É o caso da leitura confessional - a leitura narciso. É uma patologia, não tenho dúvida. Você só aprova, só apreende, só acalenta, aquilo que já sabe, já crê, já tem: ler é olhar-se no espelho.

4. Nesse caso, não importa o que, mas, se você lê outra coisa que não aquilo em que você acredita e que, para todos os fins, mantém sua mente aprisionada em cárcere auto-vigiado, então você detesta essa literatura com todas as vísceras, com os intestinos - enfeza-se. É uma lei noológica: as idéias nos tornam zumbis. Sob controle da idéia-confissão, o leitor nada pode fazer - se não lutar. Mas é extremamente difícil lutar. Mais ainda, libertar-se.

5. O segundo tipo de leitura que nos apaixona é aquele em que deixamos a natureza do problema vir à tona e, independente do que cremos, pensamos, acreditamos ter, esforçamo-nos honestamente para enxergar, doa a quem doer, racionalmente, logicamente, criticamente, sem qualquer trilho ideológico incontornável, o fenômeno tal qual ele se apresenta a qualquer humano na posição honesta de o olhar investigativamente, criticamente, de o ter sob o olhar tal qual ele é ao olho humano, e não tal qual ele tem de ser à doutrina.

6. Nesse tipo de leitura, você pode, inclusive, mudar completamente de idéia - entra com "a" na cabeça e sai com "z", mudado, transformado. É interessante como há quem pregue transformação pela "leitura", mas é tão bitolado que jamais mudará, ele mesmo, o que pensa: os outros é que devem mudar, para chegar, naturalmente, à imagem de si, isto é, dele. Os outros são medidos pela distância que estão dele...

7. Mas mudar de pensamento, corrigir-se, abandonar idéias arraigadas, querer abandoná-las, querer mudar de idéia, deixar-se tocar pela crítica, pelo bom senso, pela argumentação franca e aberta, essa é uma condição necessária para o segundo tipo de leitura.

8. No primeiro caso, ama-se a verdade que já se tem (que se cuida ter). No segundo, ama-se a idéia de verdade, de que é possível chegar a ela. Uma é profundamente idólatra - a primeira. A segunda, crítica - iconoclasta, até.

9. Não é difícil encontrar gente de um lado e de outro. E sempre poderá ocorrer o caso de um leitor típico do primeiro tipo mudar, abandonar seu estágio de letargia hipnótica, de self deception, e passar a operar criticamente, tanto quanto um leitor do segundo tipo cimentar-se numa posição fixa, imóvel, perder a dinâmica crítica e cair na clausura da verdade adquirida.

10. Nenhuma posição é absolutamente intransponível, inabalável. Mas são duas posições epistemológicas e psicológicas completamente diferentes. Mais - são irreconciliáveis.

11. No cristianismo (e eu, sempre voltando às origens!), há dos dois tipos - mormente, em muitíssimo maior grau, leitores do primeiro tipo, porque a própria Escritura assim os constrange - cf. Jd 3 e 5, por exemplo. Um cristão ortodoxo é obrigado a crer no que lhe ensinam. Ele se lê como livre, mas é escravo da fé - e tem de ser, se quer ser ortodoxo. A riqueza do cristianismo, todavia, não está neles, nos ortodoxos - está justamente naqueles críticos e hereges que, absolutamente desacreditados da verdade que se lhes apresenta, questionam, gritam, transformam, abandonam, reformulam, recriam. Todo confessional de hoje deve sua vida a hereges - não fora os hereges, a fé não seria nada nem próximo do que um confessional contemporâneo crê. Nicéia teria sido um malogro - e todo cristão seria, ainda, judeu!

12. É verdade que, no dia seguinte, o novo crítico e herético acaba virando coisa velha e, de novo, as mentes, ontem críticas, entregam-se à paixão de lamber o mármore da fixidez institucional. Isso porque a própria índole do sistema não é crítica, mas coercitiva e heterônoma, hierocrática e normativa, de modo que as mentes críticas são explosões heréticas momentâneas.

13. Todavia, não duvido: a riqueza do Cristianismo são essas explosões de super-novas, essas heresias, caçadas a ferro, fogo e tenaz, roda e forca. O restante é a longa noite do espelho, em torno do qual, todavia, para riqueza da noite, dançaram inúmeros pirilampos...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Anônimo disse...

Mas, Osvaldo, ONDE, POR DEUS, ONDE SE VAI CHEGAR COM ISSO?

Se se ama a idéia de verdade ou a possibilidade de se chegar a ela, mas, por outro lado, se classifica a chegada a ela, à verdade, como "coisa velha", "lamber o mármore da fixidez institucional" ou "longa noite", o que é que estamos fazendo? Não estamos brincando, como quem resolve aprender a língua klingon para os encontros periódicos de fãs de Star Trek?

Para quê perseguir algo que não quero encontrar, já que se o encontrar estarei cedendo à "índole do sistema"?

Sim, é extremamente difícil lutar, libertar-se, sobretudo quando o fim da luta ou da libertação é flutuar no ar, porque, se pousamos, é de novo a "mente aprisionada em cárcere auto-vigiado".

A pessoa rejeita tudo aquilo em que creu durante sua vida toda, tudo aquilo que fundamentou sua vida, seus valores, depois da "extremamente difícil" luta interior, conflitos, lágrimas, desespero, e para não chegar a nada!!! Para viver perseguindo a linha do horizonte e torcendo para que não apareça o cume do Monte Pascoal, porque, se aparecer, terá que se desviar?

Como é isso?

Dia desses eu estava decidido à busca, à libertação a partir da minha lista de livros, da sua, então fiquei pensando no que seria essa jornada, no que foi a jornada daqueles homens, daqueles pensadores, se eles encontraram algo, já que desmentidos, reinterpretados, relidos um após o outro pelos que se lhes seguiram, e se eu encontraria algo ou se chegaria ao fim da vida olhando ainda para o horizonte... e ainda desejando não ouvir jamais o terra à vista...

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