quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

(2011/542) Sobre que sentido tem uma declaração (em francês) de Dostoiévski - reflexão rasa e rasteira ao pé da montanha


1. Desde que li Losurdo e sua inadjetivável biografia intelectual e crítica de Nietzsche que tenho medo de me aproximar de citações de autores europeus - principalmente do século XVIII e XIX. O século XX inventou uma "história da recepção" que a tudo legitima, e torce, e "re"forma, e "de"forma, e tanto que se perde, na bruma da noite, o que é, afinal, que o autor de fato disse - e para que o saber?, será dito, se o rapaz pode ser torcido até gritar?!, disse Foucault...!

2. Mas eu ainda padeço do mau do senso histórico, ainda acredito naquela miragem de que as pessoas dizem coisas que estão em suas cabeças, mesmo quando mentem, é delas, das pessoas e de suas cabeças que as coisas saem, ainda que paridas por um acontecimento, um contexto, o útero é a cabeça. De sorte que a "história da recepção", que a tudo legitima e torna admirável, para mim, é exercício (disfarçado, quantas vezes!) de história (como é irônico!), quer dizer, se você não é historiador de verdade, mente em ter compreendido a recepção do que quer que seja - porque também ela é... histórica! Porque, se se foge do sentido do autor A, como se pode chegar ao sentido novo que o receptor/autor B deu, ontem, ao que leu do autor A?

3. Mas, ontem, fui açulado a dar meu parecer sobre uma citação reputada a Dostoiévski - de que pouco li. O mais prudente é calar-me. Todavia, eis a citação, em francês, como me foi encaminhada, com um possível problema de aspas:
Inertie! Ô nature! Les hommes sont seuls sur terre, - voilà le malheur! Y a-t-il encore dans la plaine un homme vivant? » - crie le preux de la légende russe. Je crie moi aussi, qui n'ai rien d'un preux, et personne ne me fait écho. On dit que le soleil fait vivre l'univers. Qu'il se lève, le soleil, et regardez-le, n'est-ce pas un cadavre? Tout est mort, et partout des cadavres. Rien que les hommes, et autour d'eux le silence, - volià la terre! « Hommes, aimez-vous les uns les autres », - qui a dit cela? De qui est-ce le testament? La pendule sonne, insensible, hostile.

4. Bem, eu penso que o centro "psicanalítico" da citação é a citação que ela mesmo faz, quase no final: "Hommes, aimez-vous les uns les autres », - qui a dit cela?" ("Homens, amai-vos uns aos outros, - quem disse isso?"). Se traduzo corretamente, a primeira parte da citação reporta-se ao fundamento ético/moral/social do Ocidente cristão: Deus(Yahweh)/Jesus, como eixos metonímicos da tradição judaico-cristã, foram eles que mandaram que os homens se amassem. Agora que, no Ocidente, o jogo moderno deixou de fundamentar-se neles, em nome de que regra se haverão de amar os homens entre si?

5. Penso que, na citação, a referência ao esvaziamento teológico do jogo ocidental esteja na descrição do sol como o doador da vida. Não é uma declaração ingênua - e falta-lhe a outra parte significativa, deixada elíptica. É ele, o sol, e não mais Deus, quem sustenta a vida. Uma naturalização da vida, uma desteologização da vida, eis aí a "inércia", eis aí a natureza, nua e despersonalizada, como último recurso da compreeensão... da compreensão, não, do jogo, da regra humana. Fillhos de Deus, não, da natureza...

6. Não vou aqui arriscar as razões psicológicas que levam Dostoiévski a "resmungar" contra a desteologização do mundo. Seja qual for, sua última atenção recai sobre a ética: ele desacredita que num mundo desteologizado haja razão para os homens se amarem, porque, para ele, os homens se amam como obediência a Deus, e mais nada. Se Deus não há para mandar que se ame, matar-se-ão mutuamente, porque não há, na natureza, nada que me "imponha" o amor (e por que se mata[va]m, então, quando Deus havia?)...

7. Minha leitura pode estar errada. A lição de Nietzsche me doeu profundamente, desde que a aprendi de Losurdo - e não posso culpar aqueles que mo leram, adulteraram-no, para mim, posto que o li eu mesmo. Mas não sabia de quem se tratava, leitura má eu fizera. Assim, não sei, de fato, quem é esse russo, badaladíssimo, lido à beça, mas ser lido não significa ser necessariamente compreendido.

8. Temo, todavia, que a recepção de Nietzsche, no século XX, faça exercer sobre a recepção de Dostoiévski uma força de torção tão grave quanto a sofrida pelo próprio filósofo escravagista. Referir-se a Nietzsche como alguém preocupado com o "sentido da vida", na condição de um filósofo das idéias, ah, nada mais fora de contexto - o que Nietzsche fazia era tentar, por todos os meios, arruinar a base de argumento da revolução - e só. O esforço filosófico de Nietzsche era um só: salvar a aristocracia - e Darwin lhe caiu no colo!... Longe de refletir com a cabeça, refletia com o umbigo...

9. Daí, que não sabendo o que é que Dostoiévski está fazendo de fato, com que parte do corpo ele reflete, fica muito difícil dar o sentido exato do que dizia, fazendo o que fazia. Está ele a tentar destruir apenas os argumentos modernos, na tentativa de manter seu mundo medieval, ele, russo, numa Rússia que era a nata do aristocracismo "europeu"? Ou seja - está ele fazendo guerra e política, apenas? Será ele um filósofo desencantando com o desencantamento do mundo em que vivia, a casa da bruxa, de doces e chocolates, revela-se, finalmente, quimera? Ou seja, será ele um filósofo de gabinete, tonto de tanto pensar?

10. Seja como for, Dostoiévski não pode aceitar o novo: o que ele tem pela frente é um mundo que arrasa todos os seus fundamentos. Olhar para a vida, na forma como ela se apresenta, é-lhe doloroso, impossível. As idéias antigas!, as respostas antigas!, aquelas histórias de lareira!, se elas não valem mais, acabou-se o sentido da vida...

11. O que é que está fazendo nosso famoso literato?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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