1. Citar versículos bíblicos - esporte preferido de dez entre dez "crentes" (termo cada vez mais desgastado, mas, nem por isso, menos atual!). No campo da fé, Hebreus é campeão. Mas - cá entre nós: o que isso quer dizer?
2. Vejamos aquele verso decorado: a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se vêem (Hb 11,1). Muito bem. Leiamos ao pé da letra: a fé, ela é a prova das coisas que não se vêem. Ou seja: se você tem fé na coisa, eis aí a prova de que ela existe, porque, se você tem fé, essa fé que você tem "prova" que a coisa existe.
3. Outro verso: havendo, outrora, por muitos meios, Deus falado aos profetas, em nossos dias, Deus tem falado, a nós, pelo Filho. Isto é: depois de ter empregado muitos meios para falar, Deus, agora, emprega um: o Filho.
4. Analisemos Hb 1,1-2a. O crente "comum" tomará ao pé da letra a expressão bíblica, sem se perguntar, em termos concretos, do que se trata. Não é que o faremos. Quando se escreve Hebreus, o "Filho" há muito já se foi, ressurreto e assunto aos céus, reza a tradição. Logo, não é mais - pessoalmente - o "Filho" a dizer coisa alguma.
5. E quem é? Se eu puder usar um pouco de "intertextualidade", "Moisés". Lembram-se de Nm 12? A meu ver, trata-se da mesma coisa, do mesmo fenômeno: lá, "Moisés" - isto é, a meu ver, a classe sacerdotal (cf. Ml 2,7) - toma para si - e só para si - o poder de falar em nome de Deus. Os e as profetas reclamam. Elas tornam-se leprosas. Eles, talvez os "levitas?, são cooptados (na qualidade de "ogans" do Templo de Jerusalém). Como termina a história? Só Moisés, de fato, fala em nome de Deus - só os sacerdotes.
6. Ora, quem é que fala pelo "Filho", em Hb 1,1-2a, se o "Filho" já se foi? A Teologia, sempre e desde sempre dissimulada e disfuncional, dirá: o Espírito. Alguém mais atento, e com menos febre, dirá: os "anjos", isto é, os "mensageiros" das igrejas, isto é, os pastores, os líderes, os apóstolos, os presbíteros, os donos. Paulo, por exemplo, por meio de cuja boca fala o "verdadeiro evangelho" - as demais, anátema!
7. Se alguém quer ouvir a voz do Filho, hoje, deve ouvir aquele que se afirma porta-voz do Filho. Eu/nós, diz Hb 1,1-2a, sou/somos a voz do Filho. É por meio de eu/nós que Deus fala - e por meio de mais ninguém. Poder. Ponto.
8. Quanto a Hb 11,1, não estamos muito longe disso: a nossa fé vale, a dos outros, não. Não é a fé que conta, mas a nossa fé. Se nós cremos em anjo, existem. Se eles crêem, não, não vale. Se cremos em "nosso" Deus, existe. Se eles crêem, não, não existem. Tudo quanto em nisso crer um "crente", isso há e é verdadeiro - os outros, se crêem, é falso, é mau, é demônico. Nós, verdade, eles, mentira...
9. Os versos parecem dizer uma coisa, mas dizem outra. Disfunção comunicativa e cognitiva: um diz - Deus fala por meio de nós e só de nós - Deus não fala por meio de mais ninguém. O outro verso diz: a nossa fé é verdadeira - a dos outros, falsa.
10. São versos de dois mil anos - mas, cá entre nós, atualíssimos, porque a alma cristã de hoje mudou muito, muito, muito pouco, nada, nada, quase nada em relação àquela, voraz, a comer o mundo inteiro, desde sempre.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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