1. Tornou-se "moda" falar de "novas leituras". Não se sabe (quase?) nunca com certeza do que se está falando quando se usa essa expressão. É o mesmo que se dá quando se diz que se faz "teologia como metáfora" - você nunca sabe exatamente do que se trata, de quem se trata. Quando se fala de "novas leituras", você também fica aturdido, desorientado. Ficar desorientado é uma sensação desagradabilíssima. Bastante pós-moderna, onde a desorientação, traduzida em não-orientação, em orientação-própria, funciona, quantas vezes?, como uma orientação ao contrário. Desorientação no Hifil, vai...
2. Não quero saber de "novas leituras" de coisas antigas, se essas "novas leituras" são ensaios de alegoria - explícita ou implícita. Você pode dizer o que quer que seja, utilizando-se de coisas antigas. Invente qualquer coisa. Qualquer. E pode fazer qualquer texto antigo dizer isso que acabou de inventar de dizer.
3. Uma excelente ilustração - porque (de certo modo) confessada pelo autor - encontra-se numa espécie de "interlúdio" que Aldous Huxley escreveu em Os Demônios de Loudun, no capítulo 3, seção II. A certa altura, lê-se:
4. Veja: trata-se apenas da linguagem da teologia cristã. Mas não se trata - mais - do que diz a teologia cristã. Utilizando-se da linguagem da teologia cristã, o que se expressa é a Verdade e o Dever fundamental, que se definira antes: "A Verdade fundamental de que o Outro é você" e o "Dever primeiro de se afastar, para que o Fundamento possa assomar à superfície da consciência finita" (p. 74). Não estamos, aí, no Antigo Oriente Próximo e na Grécia - estamos no Extremo Oriente! Verdade e Dever.
5. Mas a linguagem é cristã. Mas, é cristã porque assim decidiu fazer Huxley. O mesmo se poderia dizem sem ela: "sabemos que Atmã (...) é o mesmo que Brahman" (p. 74). Não há nada - absolutamente nada - de propriamente cristão nem trinitário aí, na Verdade e no Dever fundamental - mas o que aí se expressa pode ser expressado também por meio da linguagem cristã. Da linguagem. Do vocabulário.
6. Trata-se de um jogo de linguagem. O real dissolve-se, e você emula outro para você, mais útil, qualquer que seja, e, nesse caso, o que você quer, transmutando as palavras cheias dos textos passados em palavras vazias, balões de gás, que você enche, palavras de casca, cujo conteúdo você arrancou - por meio de argumentos sempre a ou contra-históricos -, em palavras agora cheias de "novos sentidos". E, aí, você escreve livros.
7. A isso chamo literatura de espetáculo. Não ao que Huxley fez, mas ao que se faz, quando se fazem, hoje, "novas leituras". É uma espécie de arte - no sentido de que as palavras passadas transformam-se em pedações de coisas com as quais você monta uma nova peça, e expõe. Trata-se de espetáculo - a arte do século XX, a estetização de tudo, eventualmente, de todos. Espetáculo que, às vezes, se dirige ao gosto estético da gente-século-vinte, talvez a da gente-século-vinte-e-um. Mas, às vezes, à fé dessas pessoas. Espetáculo para os olhos e/ou para a alma.
8. Não me entrego ao exercício. Resisto. Se quero coisas novas, direi coisas novas. Gosto de coisas novas. Se possível, eu mesmo inventarei coisas novas. Mas não direi coisas novas, utilizando-me para isso das coisas velhas como se elas mesmas fossem as coisas novas, como se elas pudessem ser deformadas em si mesmas para conformarem-se a minha gravidez. Não. Pelo contrário. Dedico-me a desmontar as coisas que se disseram como novas a partir das palavras velhas. Quero ouvir as palavras velhas enquanto velhas palavras. Quero sentir seu cheiro de mofo. Sou historiador (tento ser!). Não sou artista.
9. O que me leva a deixar muito claro que a única "nova leitura" que me agrada é aquela do tipo que Domenico Losurdo faz de Nietzsche - isto é, uma "nova", porque leram Nietzsche tão errado, mas tão absurdamente errado, tão carregadamente de ideologia programática, tão "inocentemente", tão filosoficamente, que ler Nietzsche na forma como ele desejaria ser lido corresponde - literalmente - a uma "nova leitura": é a velha, a "original", mas é nova, porque deformaram o filósofo, para fazê-lo apetecível ao gosto encabulado do século XX europeu. Enojada, a arte inventa outra coisa para si, sem coragem de olhar na própria cara. Freud o disse: princípio de prazer... E Platão o ensinou: a carne enoja, a matéria, é má - viva o mundo de Disney!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Não quero saber de "novas leituras" de coisas antigas, se essas "novas leituras" são ensaios de alegoria - explícita ou implícita. Você pode dizer o que quer que seja, utilizando-se de coisas antigas. Invente qualquer coisa. Qualquer. E pode fazer qualquer texto antigo dizer isso que acabou de inventar de dizer.
3. Uma excelente ilustração - porque (de certo modo) confessada pelo autor - encontra-se numa espécie de "interlúdio" que Aldous Huxley escreveu em Os Demônios de Loudun, no capítulo 3, seção II. A certa altura, lê-se:
"A Verdade e o Dever fundamental podem ser formulados, de forma mais ou menos adequada, no vocabulário de todas as religiões mais importantes. Na linguagem utilizada pela teologia cristã, podemos definir 'revelação' como a união da alma com Deus enquanto Trindade, três em um (Aldous Huxley, Os Demônios de Loudun, Círculo do Livro, 75 - negritos meus).
4. Veja: trata-se apenas da linguagem da teologia cristã. Mas não se trata - mais - do que diz a teologia cristã. Utilizando-se da linguagem da teologia cristã, o que se expressa é a Verdade e o Dever fundamental, que se definira antes: "A Verdade fundamental de que o Outro é você" e o "Dever primeiro de se afastar, para que o Fundamento possa assomar à superfície da consciência finita" (p. 74). Não estamos, aí, no Antigo Oriente Próximo e na Grécia - estamos no Extremo Oriente! Verdade e Dever.
5. Mas a linguagem é cristã. Mas, é cristã porque assim decidiu fazer Huxley. O mesmo se poderia dizem sem ela: "sabemos que Atmã (...) é o mesmo que Brahman" (p. 74). Não há nada - absolutamente nada - de propriamente cristão nem trinitário aí, na Verdade e no Dever fundamental - mas o que aí se expressa pode ser expressado também por meio da linguagem cristã. Da linguagem. Do vocabulário.
6. Trata-se de um jogo de linguagem. O real dissolve-se, e você emula outro para você, mais útil, qualquer que seja, e, nesse caso, o que você quer, transmutando as palavras cheias dos textos passados em palavras vazias, balões de gás, que você enche, palavras de casca, cujo conteúdo você arrancou - por meio de argumentos sempre a ou contra-históricos -, em palavras agora cheias de "novos sentidos". E, aí, você escreve livros.
7. A isso chamo literatura de espetáculo. Não ao que Huxley fez, mas ao que se faz, quando se fazem, hoje, "novas leituras". É uma espécie de arte - no sentido de que as palavras passadas transformam-se em pedações de coisas com as quais você monta uma nova peça, e expõe. Trata-se de espetáculo - a arte do século XX, a estetização de tudo, eventualmente, de todos. Espetáculo que, às vezes, se dirige ao gosto estético da gente-século-vinte, talvez a da gente-século-vinte-e-um. Mas, às vezes, à fé dessas pessoas. Espetáculo para os olhos e/ou para a alma.
8. Não me entrego ao exercício. Resisto. Se quero coisas novas, direi coisas novas. Gosto de coisas novas. Se possível, eu mesmo inventarei coisas novas. Mas não direi coisas novas, utilizando-me para isso das coisas velhas como se elas mesmas fossem as coisas novas, como se elas pudessem ser deformadas em si mesmas para conformarem-se a minha gravidez. Não. Pelo contrário. Dedico-me a desmontar as coisas que se disseram como novas a partir das palavras velhas. Quero ouvir as palavras velhas enquanto velhas palavras. Quero sentir seu cheiro de mofo. Sou historiador (tento ser!). Não sou artista.
9. O que me leva a deixar muito claro que a única "nova leitura" que me agrada é aquela do tipo que Domenico Losurdo faz de Nietzsche - isto é, uma "nova", porque leram Nietzsche tão errado, mas tão absurdamente errado, tão carregadamente de ideologia programática, tão "inocentemente", tão filosoficamente, que ler Nietzsche na forma como ele desejaria ser lido corresponde - literalmente - a uma "nova leitura": é a velha, a "original", mas é nova, porque deformaram o filósofo, para fazê-lo apetecível ao gosto encabulado do século XX europeu. Enojada, a arte inventa outra coisa para si, sem coragem de olhar na própria cara. Freud o disse: princípio de prazer... E Platão o ensinou: a carne enoja, a matéria, é má - viva o mundo de Disney!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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