1. Cântico dos Cânticos, capítulo um, versículo nove - vá à versão que você tem em casa. Leia. 99% de chance - 99,9% de chance - de que leia isso, ou algo parecido: "às éguas atreladas aos carros de faraó eu te comparo, amiga minha", ou, no singular: "a uma égua atrelada ao carro de faraó". Aí, seja nos comentários, seja nos púlpitos, por décadas, ouvimos falar algo assim: trata-se de comparar a beleza da égua do carro do faraó: a amada é tão bela, tão formosa (para alguns, tão "forte"...), que se vê comparada à belíssima égua de faraó... Nesses termos, trata-se de uma referência à beleza da amada...
2. Aí, você quer ter certeza, e vai ao melhor comentário disponível. Bate à sua mão ninguém menos do que Othmar Keel - The Song of the Songs. Você lê: "a uma égua entre os carros de batalha de faraó...". Pronto, lá está, de novo, o "motivo" - beleza... No entanto, o próprio Keel sabe que o que está implícito aí é que a amada é égua, ao passo que os carros de batalha são puxados por garanhões. Uma égua de um lado, garanhões de outro. Ora, se o tema é a beleza, a amada está a ser comparada com machos ou com carros!...
3. O jeito - sempre, aliás - é recorrer ao hebraico. E, meus amigos, aí, a porca torce o rabo. A tradução de Almeida e a de Keel está errada. O texto hebraico, literalmente, não fala de égua - fala de minha égua. Ao pé da letra, eis a tradução: à minha égua entre os carros de faraó eu te comparo, amiga minha. Minha égua. Não éguas nem uma égua - minha égua.
4. O que está sendo dito? De um, lado, a minha égua, do outro, os carros de faraó e seus alazões. Como Keel dissera, uma égua no meio dos carros de batalha deixa os garanhões nervosos: o amado perdeu a cabeça diante da amada? Ou - à luz do que será dito em 2,2, trata-se de ser dito a ela que ela é única, exclusiva - a minha égua -, diante de quem todas as demais são como que machos?
5. Para mim, Ct 1,9 não tem nada a ver com a beleza da amada. Tem a ver com seu "projeto" - monogamia. Se o amado a quiser, tem de ser como única - ela, uma açucena entre espinheiros, ele uma macieira entre árvores de bosque, ela, única para ele, ele, única para ela.
6. Se desejam beleza, aguardem que encontrarão, detalhadamente, adiante. Mas aqui, no v. 9, a primeira fala do amado em relação à amada, ouve-se o que interessava a ela ouvir dele: quero você, e só você.
7. No final, terá sido em vão. Mas, essa já é outra história...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Aprendi o sentido estético. Mas prefiro a este do que o real, segundo sua leitura. Minha é palavra muito possessiva, bem reveladora daquela época em que o macho possuía as fêmeas, numa relação de dominação e desigualdade.
Ninguém é de ninguém.
Haveria menos violência, menos falseamento na interpretação de valores como fidelidade, por exemplo, se o limite fosse o respeito, significando este o olhar para o outro, sendo apenas o outro, "ser-de-ninguém", aprisionado unicamente a sua própria liberdade.
Com certeza, as pessoas não se achariam no direito de matar por paixão, de cometer horrores por se sentir traído pelo supostamente
seu homem ou sua mulher.
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