sexta-feira, 13 de maio de 2011

(2011/281) De Deus como justificativa para o "amor" ao próximo



1. Lutero considerou-o não-canônico: Tiago. A crítica do cânon é algo que não me atrevo a fazer - por inútil que ela é. Lutero a fez - por razões teológicas. Não terá sido a primeira vez. Por outras muitas vezes, a cisão entre grupos sociais que partilhavam literatura religiosa correspondeu à cisão dessa literatura religiosa - os judeus (o cânon farisaico) e a comunidade joanina (que utilizava os deuterocanônicos [(quase) sem nenhuma dúvida, Sabedoria, Eclesiástico e Baruq]); os cristãos e os "gnósticos" (os apócrifos!); os samaritanos e os judeus de Jerusalém; Lutero e os "católicos". Cânon é corte, é facão no tronco.

2. Mas voltemos a Tiago. Tg 2. Para argumentar contra a acepção de pessoas, ele declara, categórico - a lei manda amar: quem não ama, é réu. A lei manda amar... Lei de Deus - então. Dizer que a lei manda amar é o mesmo que dizer que Deus manda amar. No Cristianismo, a lei caiu - mas Deus continuou a mandar amar. Amar - ainda - é a lei, o dever, a obrigação. Ame, e seja cristão. É a lei que é Deus.

3. A República trouxe a lei para a administração humana - o parlamento. O jogo tornou-se outro. Não há uma lei adventícia - somos nós a fazê-la: não há Deus a dizer que temos de amar. Somos nós a dizê-lo - e, claro, isso porque fomos cristãos, antes de sermos republicanos. E decidimos que a lei da República é o "amor" (aqui, em sentido muito amplo): o respeito aos direitos do outro. Na República, é o que basta. Eu mesmo (a República é meu governo - tanto quanto nosso) decido jogar nos termos do amor. Certo - ele, o amor, pode ter sido incluído na tradição (duvido) por força do Cristianismo, logo, de "Deus". Não vem ao caso, aqui. Como valor, permanece porque eu quero. Não é preciso - no meu caso, que o rei, o presidente, Deus, ninguém me diga para respeitar o próximo - eu mesmo me digo, porque a República sou eu, somos nós.

4. Quem não joga o jogo, polícia nele. Pronto. Não deixa de ser uma dessacralização do jogo antigo - inferno aos pecadores. Não deixa de ser... Todavia, é assim que se joga hoje. E, nesse jogo, soa anacrônico, falso, alienante, dizer que se deve amar porque Deus quer... Porque não é verdade...

5. Geralmente, os entendidos em Teologia o fazem para os outros. São os outros que precisam ouvir. "Eu" já entendi. "Eu" sei que o amor que devo ao outro é regra do jogo que eu jogo. Mas os outros, não. Então, preciso - ainda - dizer que é Deus quem manda amar, porque eles ainda brincam desse jogo. Não só teólogos - filósofos e políticos, também... Nós, os esclarecidos...

6. Ou seja, eu concordo com Levinàs, de Buber - o amor é fundamental para a vida. Mas discordo de sua retórica de ir lá, no velho Deus judeu (e cristão), para convencer os outros... os outros. Porque duvido que Levinàs precise de sua própria retórica. É lúcido demais para isso.

7. Não será essa insistência do discurso pseudo-filosófico da fundamentação do amor - hoje ainda - em Deus uma espécie de subconjunto da retórica pós-moderna?: o mundo se constrói com discursos: os discursos são degraus para lugar nenhum, mas degraus, que usamos para subir, descer, para caminhar. Não queira coerência e sentido nos discursos: queira funcionalidade! É como a metáfora na teologia como metáfora: degraus úteis... Na afirmação "Deus manda amar", Deus é um degrau. Eu piso no degrau Deus e tenho aí uma como que fundamentação para minha ação - como se fosse necessário uma... como se eu necessitasse de uma...

8. É vazio esse discurso e essa retórica. Se decidimos encarar o princípio de realidade - não serve para nada: a não ser, tocar boiada... O gado, sempre o gado, precisa dos boiadeiros. O berrante é essa pregação: Deus manda amar, e a oração, a torcida para que as pessoas façam o que deviam fazer, ainda que crendo que é um Deus quem as cutuca os traseiros com lanças de boiadeiro, ou lhes puxa pelas argolas dos narizes. Elas precisam disso, justifica-se...

9. Talvez tenha de se conceber uma aristocracia do intelecto: para alguns, basta a lucidez, para outros - a maioria?, há que se usar de muito berrante, de muito laço, de muito curral... Na prática, parece isso. Ou não? Ou todos nós precisamos de berrante - é que uns cansaram do som que ele faz? Ou pior - tornaram-se gado desde os intestinos, e não apenas na aparência?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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