domingo, 8 de maio de 2011

(2011/276) De uma Teologia serafim - do resguardo da santidade divina pelo recurso da inefabilidade da divindade



1. Há fé que é impudica. A de Karl Barth - não quer nem saber, não se faz de regado: fé é crença positiva na revelação proposicional divina, doutrinária, eclesiástica. Uma só Igreja, um só Deus, uma só Doutrina. Fé máxima, positiva, concreta, material. Neo-ortodoxia - um perfeito termo para o movimento de retorno à positividade da fé, na sua forma expressiva, doutrinal - reação fortíssima ao sus(r)to liberal...

2. Mas há outra fé, igualmente fé, mas extremamente recatada, pudica - envergonhada? Trata-se da Teologia negativa. O recurso é extremamente sutil, e, eu confesso, já me deixei "animar" por ela, já me deixei encantar, e, confesso de novo, há momentos em que ainda me refugio nela, em momentos de retórica escolar ou de reflexão mística. Todavia, cá entre nós, não há fundamental diferença entre as duas expressões de fé - entre Barth e Eckhart. Ai!

3. A Teologia negativa apenas diz que Deus é inefável, inapreensível. Não há, para essa fé, como a razão, a retórica, a voz, a palavra humana comportar Deus. Deus não cabe aí. E mesmo quando se tenta uma analogia, peca-se, pela presunção, pela redução de Deus a algo redutível ao humano. Falar de Deus é pecar...

4. Aparentemente, trata-se de uma refinadíssima expressão de fé. No fundo, uma expressão racionalizada da função dos serafins. Barth é o sacerdote-oráculo: seu pathos é falar de Deus, anunciar Deus, desenhá-lo nas paredes das catedrais, escrevê-lo nos livros, nas bulas, nas catequeses. Há em Barth aquela pulsão de falar, falar, falar - é o pregador, está cravada em seu peito a Grande Comissão. Ele é o arauto da Verdade, esse fermento que não cabe no coração, mas escorre pela pele dos grandes religiosos...

5. Eckhart é outra coisa. É um serafim. Sua autocompreensão de si vê-se como as serpentes protetoras dos templos. Os serafins, serpentes aladas, protegiam Yahweh. Isaías invade a sua santidade, e os serafins, desprevenidos, tendo falhado na proteção do deus, correm a cobrir-lhe - do deus! - as faces, os "pés", e, no extremo, a curar, pelo fogo da forja, o pecado de um humano recém-ingressado na santidade divina do templo celeste...

6. Eckhart é esse serafim: sua missão - proteger Deus, resguardá-lo da profanação da razão, das palavras, da crítica. Pôr Deus à distância das palavras humanas mantém-no imaculado, intocado, protegido. Deus não pode ser analisado, investigado, reduzido à racionalidade humana. A Teologia serafim salva Deus.

7. Cá entre nós - Feuerbach acaba com Barth. O fato de Barth ser posterior a Feuerbach apenas significa que o protestante não dá bola para nada que não seja si mesmo. Todavia, depois de Feuerbach, Barth é coisa infantil, jogo de damas, videogame. É jogo. Político, é certo. Mas nada mais do que um jogo de palavras e de políticas litúrgicas.

8. Mas, eis que o serafim-Eckhart ouve Feuerbach e concorda com ele: sim, as palavras humanas sobre Deus são isso mesmo - invenções/projeções humanas. Não são Deus. São hipóstases do próprio homem. Deus mesmo, ele arremata, serafim, jaz inacessível, salvo das palavras humanas...

9. Barth e Eckhart não ouvem, de jeito algum, Feuerbach. Barth finge concordar: sim, a religião, o cristianismo, é projeção humana, mas a revelação de Deus vem ao homem na forma da doutrina revelada... Eckhart finge concordar com Feuerbach: sim, as palavras humanas sobre Deus são invenções humanas - Deus mesmo está protegido para além delas...

10. Duas fés completamente diferentes, mas co-irmãs. Barth levará ao fundamentalismo de qualquer jeito. Eckhart, a uma mística envergonhada e autoprotetora. Barth finge que a revelação positiva não é projeção humana, e Eckhart finge que o Deus protegido não tem as vergonhas à mostra.

11. O que é que sobra para nós, se não-barthianos, se não-eckhartianos?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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