1. A noção de "ser" chegou a um beco sem saída. Não é que seja imprestável. Pelo contrário! Sem ela, não teríamos chegado até aqui. Todavia, quando pensamos na "coisa" - na coisa tal qual a coisa é, independente de mim, o "ser" quase - apenas quase - dissolve-se... Também há os que desgostam da expressão "a coisa em si", porque cuidam que só há coisas quando os homens olham para elas, mas, quanto a eles, acho que ainda usam a mente teológica, mas aplicam-na a nós, pulgas do cosmo... Se os levo a sério, concluo que fomos nós os criadores dos elementos químicos que organizamos naquele engenho magnífico que é a Tabela Periódica, e que foi o traque de Adão aquela explosão tremenda que teria sido o Big Bang...
2. Que há algo fora de nós, além de nós, e com o que algo em nós é feito, refaz-se, dia a dia, daí termos que comer esse algo fora de nós, arroz, feijão, carbono, ferro, bem, disso não duvido. Duvide quem desejar duvidar - mas coma ferro, caso contrário, ficará anêmico... O problema é o que é isso que está "lá fora"...
3. Disse que a noção de ser chegou a um beco sem saída porque o que consideramos "ser" - a pulga, por exemplo - é um recorte: e, sim, o recorte está lá! Mas é um recorte que pode, se eu desejo, ser desrecortado. Porque a pulga é um ser vivo, mas constituído de moléculas físicas. Nesse nível, o das moléculas, a pulga sumiu: não há pulga aí, nem um eu que se dê conta de que a pulga, que estava lá, não está mais. É que a pulga é um ser de escala - e duvido que o seja, essa escala, antropológica: o cão que o diga! Mas a pulga é da escala do antropológico. Ela, a pulga, e eu, estamos na mesma escala, somos seres de mesma escala - somos seres de organização de nível supra-quântico, supra-atômico, supra-molecular - celular, orgânico.
4. Mas se eu desço de nível, se eu, com minha mente, minha coisinha de vasculhar debaixo da saia da Natureza, observo as suas vergonhas desnudas, vejo que a pulga só existe nesse nível em que também eu estou, mas que ela não se reduz a isso. À medida que amplio meu olhar, faço dos meus olhos um microscópio potente, vejo que sequer há "carne" aí - só moléculas de carbono a brincar de agarra-agarra com outros átomos. Não há vida, nem alma, nem sangue, nem fezes, aí - só átomos e forças invisíveis - ditas forças organizacionais...
5. E, um dia, inclusive, chegamos a pensar que aí residia o "ser", que o ser era isso - átomo. Mas nem isso. Se amplio ainda mais meus olhos, descubro que mesmo eles são seres em seu nível - só em seu nível: acima deles, a pulga e eu, abaixo deles, os quarks, os glúos, os léptons, os férmions, os neutrinos... Não, esses serezinhos micro de micro de microscópicos são pedaços de coisas sabe-se-lá-o-quê, com as quais se fazem os átomos, que, para elas, são, como aos átomos, é a pulga - um ser de outro nível, talvez, quem sabe, de outra natureza...
6. Estamos sem saber, hoje, se abaixo dos quarks e de seus irmãos e irmãs há outros níveis. Não duvidemos. Também não sabemos se aí no extremamente muito embaixo os níveis acabam e nos deparamos com outro conceito a ser - e não duvidem que descobriremos! - descoberto. O que sabemos, parece ser adequado dizer, hoje, é que o que eu julgo ser é ser no nível em que ele está, mas desaparece no anterior e no posterior.
7. Assim, é preciso que abandonemos aquela noção de ser que vem desde Parmênides, um Ser imóvel, eterno, imutável. Se bem que não sabemos, de fato, o que vamos encontrar "lá dentro". É melhor que passemos a conceber: a) o ser como organização em escala, onde, aí, sim, ele é o que é, devendo ser compreendido à luz dessa escala, o que implica em concebê-lo que vindo de um nível e constituindo-se nesse; b) o ser como organização, recorte, ao mesmo tempo verdade e mentira. Mentira, porque a pulga é apenas um amontoado especial de átomos... de átomos?, de quarks... de quarks? Ou seja, se eu deixo minha perspectiva se perder no dédalo dos níveis, não posso dizer nada. Mas é verdade, além de mentira, porque a pulga é esse recorte em escala, que vive - e vive! - a sugar sangue de ratos, de porcos, de bois, de cães, e a dar, aqui e ali, rojões de Peste Negra...
8. Não me servem os modelos de aproximação ao real que até aqui empregamos - se os uso em separado. Mas se os torno complexos, para dar conta do real que se vai revelando complexo, então a coisa vai se acertando lentamente.
9. É o caso de Bel. Que é Bel? Mentira pura, no sentido de que vão ali os quarks que vão em meu vizinho, no poste da rua, no mangue de Vitória, nas fezes que limpa de Senhor Jimble. Mentira, porque ali vão amontoados complexos de átomos fabricados nos sóis, carbono, ferro, níquel, oxigênio, nitrogênio: apaixonei-me por uma Tabela Periódica, ó, deus dos fetiches! Mas, alto lá, tolos! Do fundo dessa mentira, dessas mentiras, ergue-se a verdade Bel, mulher, morena/mulata, olhos profundos que Gasset descreveria como afazer... Essa verdade é verdade quando me olha - e não são nem quarks nem átomos que me olham: é ela, e quem olhos nos olhos dela, a viu, e eles nem sabem dela... Sem esquecer, claro, que essa verdade é construída também pelos meus olhos que, olhando para ela, recriam-na, desejo de olhos...
10. Nunca mais poderemos tratar as coisas como "ser" ontologicamente fixo. Mas é organizacionalmente fixo - dissolvam-se os átomos de Bel, e com eles se pode montar um Mamute, um graveto, um osso de dedo, um Scarabeus sacer, um menino a criar ogros na cabeça - mas ela não são seus átomos: ela emerge deles, única, ser de organização.
11. Se eu não aprender a manter separadas as escalas para compreender os seres reais de cada nível, ficarei perdido em operações cripto-teológicas, "orientais", místicas, mágicas, esotéricas - mas talvez não acrescente dois dedos de altura à inteligência que é necessário criar para atravessarmos esse período de nossa história do conhecimento.
12. Complexidade e sanidade, lucidez e tapetes tecidos com os fios invisíveis do real. É preciso uma inteligência nova para lidar com isso. E ela não é tão nova no sentido de reinventar fios e agulhas - mas é nova no modo de usar os velhos fios e agulhas.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Que há algo fora de nós, além de nós, e com o que algo em nós é feito, refaz-se, dia a dia, daí termos que comer esse algo fora de nós, arroz, feijão, carbono, ferro, bem, disso não duvido. Duvide quem desejar duvidar - mas coma ferro, caso contrário, ficará anêmico... O problema é o que é isso que está "lá fora"...
3. Disse que a noção de ser chegou a um beco sem saída porque o que consideramos "ser" - a pulga, por exemplo - é um recorte: e, sim, o recorte está lá! Mas é um recorte que pode, se eu desejo, ser desrecortado. Porque a pulga é um ser vivo, mas constituído de moléculas físicas. Nesse nível, o das moléculas, a pulga sumiu: não há pulga aí, nem um eu que se dê conta de que a pulga, que estava lá, não está mais. É que a pulga é um ser de escala - e duvido que o seja, essa escala, antropológica: o cão que o diga! Mas a pulga é da escala do antropológico. Ela, a pulga, e eu, estamos na mesma escala, somos seres de mesma escala - somos seres de organização de nível supra-quântico, supra-atômico, supra-molecular - celular, orgânico.
4. Mas se eu desço de nível, se eu, com minha mente, minha coisinha de vasculhar debaixo da saia da Natureza, observo as suas vergonhas desnudas, vejo que a pulga só existe nesse nível em que também eu estou, mas que ela não se reduz a isso. À medida que amplio meu olhar, faço dos meus olhos um microscópio potente, vejo que sequer há "carne" aí - só moléculas de carbono a brincar de agarra-agarra com outros átomos. Não há vida, nem alma, nem sangue, nem fezes, aí - só átomos e forças invisíveis - ditas forças organizacionais...
5. E, um dia, inclusive, chegamos a pensar que aí residia o "ser", que o ser era isso - átomo. Mas nem isso. Se amplio ainda mais meus olhos, descubro que mesmo eles são seres em seu nível - só em seu nível: acima deles, a pulga e eu, abaixo deles, os quarks, os glúos, os léptons, os férmions, os neutrinos... Não, esses serezinhos micro de micro de microscópicos são pedaços de coisas sabe-se-lá-o-quê, com as quais se fazem os átomos, que, para elas, são, como aos átomos, é a pulga - um ser de outro nível, talvez, quem sabe, de outra natureza...
6. Estamos sem saber, hoje, se abaixo dos quarks e de seus irmãos e irmãs há outros níveis. Não duvidemos. Também não sabemos se aí no extremamente muito embaixo os níveis acabam e nos deparamos com outro conceito a ser - e não duvidem que descobriremos! - descoberto. O que sabemos, parece ser adequado dizer, hoje, é que o que eu julgo ser é ser no nível em que ele está, mas desaparece no anterior e no posterior.
7. Assim, é preciso que abandonemos aquela noção de ser que vem desde Parmênides, um Ser imóvel, eterno, imutável. Se bem que não sabemos, de fato, o que vamos encontrar "lá dentro". É melhor que passemos a conceber: a) o ser como organização em escala, onde, aí, sim, ele é o que é, devendo ser compreendido à luz dessa escala, o que implica em concebê-lo que vindo de um nível e constituindo-se nesse; b) o ser como organização, recorte, ao mesmo tempo verdade e mentira. Mentira, porque a pulga é apenas um amontoado especial de átomos... de átomos?, de quarks... de quarks? Ou seja, se eu deixo minha perspectiva se perder no dédalo dos níveis, não posso dizer nada. Mas é verdade, além de mentira, porque a pulga é esse recorte em escala, que vive - e vive! - a sugar sangue de ratos, de porcos, de bois, de cães, e a dar, aqui e ali, rojões de Peste Negra...
8. Não me servem os modelos de aproximação ao real que até aqui empregamos - se os uso em separado. Mas se os torno complexos, para dar conta do real que se vai revelando complexo, então a coisa vai se acertando lentamente.
9. É o caso de Bel. Que é Bel? Mentira pura, no sentido de que vão ali os quarks que vão em meu vizinho, no poste da rua, no mangue de Vitória, nas fezes que limpa de Senhor Jimble. Mentira, porque ali vão amontoados complexos de átomos fabricados nos sóis, carbono, ferro, níquel, oxigênio, nitrogênio: apaixonei-me por uma Tabela Periódica, ó, deus dos fetiches! Mas, alto lá, tolos! Do fundo dessa mentira, dessas mentiras, ergue-se a verdade Bel, mulher, morena/mulata, olhos profundos que Gasset descreveria como afazer... Essa verdade é verdade quando me olha - e não são nem quarks nem átomos que me olham: é ela, e quem olhos nos olhos dela, a viu, e eles nem sabem dela... Sem esquecer, claro, que essa verdade é construída também pelos meus olhos que, olhando para ela, recriam-na, desejo de olhos...
10. Nunca mais poderemos tratar as coisas como "ser" ontologicamente fixo. Mas é organizacionalmente fixo - dissolvam-se os átomos de Bel, e com eles se pode montar um Mamute, um graveto, um osso de dedo, um Scarabeus sacer, um menino a criar ogros na cabeça - mas ela não são seus átomos: ela emerge deles, única, ser de organização.
11. Se eu não aprender a manter separadas as escalas para compreender os seres reais de cada nível, ficarei perdido em operações cripto-teológicas, "orientais", místicas, mágicas, esotéricas - mas talvez não acrescente dois dedos de altura à inteligência que é necessário criar para atravessarmos esse período de nossa história do conhecimento.
12. Complexidade e sanidade, lucidez e tapetes tecidos com os fios invisíveis do real. É preciso uma inteligência nova para lidar com isso. E ela não é tão nova no sentido de reinventar fios e agulhas - mas é nova no modo de usar os velhos fios e agulhas.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário