terça-feira, 8 de março de 2011

(2011/144) Construir ou desconstruir?


1. Há duas propostas programáticas de leitura da Bíblia - deixo de fora a leitura assistemática, fruto de encontros indisciplinados entre leitor e texto, regidos, ora pela política de púlpito, ora pela devoção ventral. Atenho-me, pois, apenas aos programas conscientemente programados.

2. Um, majoritário nos ambientes em que me movo, é o da construção. Parte-se da "realidade", da "vida" - alega-se -, das "comunidades" (termo do dia, digamos assim), elegem-se os valores que, nos termos dos programadores, são os adequados: normalmente, valores como ética de igualdade, justiça, liberdade, bons valores, eu diria, mas não é isso que está em jogo.

3. De posso desses valores e dessa posição ideológica programática, vai-se à Bíblia e, não importa o que se encontre pelo caminho, e de lá se vem com um cesto de aplicações. Não faz a menor diferença se o texto, lá, é profético, sacerdotal ou sapiencial - qualquer que seja o texto, trará boas coisas para a comunidade. Há, naturalmente, um processo mais ou menos sutil de alegorização embutido no programa. E, no seu bojo, uma despersonalização dos discursos bíblicos.

4. Nesse ambiente, fala-se de leitura acadêmica e leitura de missão. A acadêmica serve para a academia, a de missão, para as comunidades. Depois, reclamamos da distância entre as Universidades e a sociedade - nós mesmos, ditos líderes comunitários, fazemos questão de assinalar a distância!

5. Outra inferência: a leitura acadêmica, reconhecida até pelos grupos engajados, serve para coisa nenhuma: para dar aulas, para alimentar o ego "cult" dos pesquisadores, para sessões regadas a vinho, para o gozo estético de uma elite seca e estéril. Em todos os casos, perfeitamente inútil.

6. De minha parte, discordo. Discordo, primeiro, da distinção entre literatura acadêmica e literatura de missão. Não faço isso e desgosto do projeto. Em termos filosóficos, ele estabelece - ou mantém? - a divisão clássico-política "elite e povo", um grupo, ora fazendo-se de pesquisador, ora de líder comunitário, e vestindo a roupa de acordo com a festa.

7. Para mim, a construção de sentido de encomenda para fins comunitários não devia ocorrer sob nenhuma hipótese. Para mim, o desenvolvimento de espírito crítico, de senso de autonomia, de suspeita, de cidadania epistemológica, deveria ser a única modalidade educacional. O modelo de construção de sentido promove a manipulação - "para o bem", alega-se - de uma comunidade, de resto, impedida de pensar por conta própria, jungida pela "Palavra" - que outro manipula: gado tocado por mãos cripto-sacerdotais. E - será? - talvez não se perceba, porque quem opera o jogo cuida serem seus valores os... divinos...

8. Depois, vem a Universal e arrasta todo mundo, reclamamos - mas é que eles fazem melhor o que nós dizemos fazer!

9. Para mim, resta a desconstrução crítica da tradição. Ao contrário do que uns choramingões alegam, não se trata de cuspir na cara da tradição - se trata de conhecê-la em seus espaços intersticiais, saber que, quantas vezes, ela é manipulação grosseira e mal-intencionada, outras, manipulação grosseira, e bem-intencionada, e que, em relação a ela, valemos nós, posto que ela é apenas o efeito de longo prazo das ações humanas.

10. Vou aos textos bíblicos e os encaro na tentativa de lhes tirar a máscara. Fala, profeta! Fala, sacerdote! Fala, sábio! Não - nada de ouvir "a Bíblia", que a Bíblia não fala é coisa nenhuma - foram homens situados, comprometidos, ideologicamente marcados, e mulheres, aposto, aqueles que disseram o que lá está escrito: para o bem e para o mal - e, em se tratando de categorias religiosas e políticas, não vai sobrar muita coisa "ética", no final.

11. Aliás, os textos de libertação, mesmo, são poucamente citados. Um Jesus a dizer, "vai", esquece, preferimos aquele que diz "ide!", porque a liberdade das pessoas de livrarem-se de nós soa apostasia, ao passo que a "grande vocação" remete ao jogo comunitário de reis, rainhas, bispos e peões. Um Jesus a dizer "não te condeno" jamais entrará na pauta do dia, mas um Jesus a servir de cordeiro, dada a multidão de pecados do mundo, sim - e pela mesma razão, a mesma que fez com que sacerdotes criassem o mito - a mesma razão... a mesma...

12. Denúncia da tradição. Não se poderá fugir dela - como? Mas se há de dar ao povo as condições de saber com quem está lidando. Mas a luz evangélica é tanta, tanta, mas tanta - que cega o pobre coitado do povo de Deus...








OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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