domingo, 20 de fevereiro de 2011

(2011/091) E viva a modernidade!


1. Não me importa o julgamento que eventualmente recaia sobre mim... Quer dizer, a depender da fonte dele, até importa, mas não há como negociar minha percepção - meu encantamento! - com a modernidade. Refiro-me, indiretamente, ao prato de lentilhas da tradição bíblica... A modernidade, para mim, tem valores incomparavelmente superiores a todas as épocas anteriores, conquanto tenha seus momentos, reconheço, não poucos, de, literalmente, pecado - no que, todavia, não está sozinha, convenhamos.

2. O que caracteriza para mim a modernidade é a emergência do "espírito aristotélico", e a superação topográfica, social, institucional, da plataforma platônica, que governa(va) o planeta há milênios. A crítica e a democracia - eis o que me interessa na modernidade, no que, a meus olhos, ela tem de insuperável em relação aos períodos anteriores.

3. Mas não é que haveremos de nos considerar a nós mesmos especiais, como ouvi agora há pouco, de posições epistemológicas privilegiadas, de experiências reservadas a iluminados... Não. Seja a crítica, seja a democracia, seus valores estão disponíveis há milênios - o que não se havia preparado, ainda, era o tabuleiro sobre a qual eles podiam ser jogados, e isso sim, é uma característica da modernidade - o tabuleiro, o jogo.

4. Não sei o que é que agride mais as consciências refinadas... Honestamente. Por que, consciências que têm de si uma tão alta conta, têm na modernidade um inimigo, um contra-valor, um dragão, uma besta? Do que é que, de fato, se ressentem - da crítica?, da democriacia?, do jogo em si? Ou será pela razão mais simples, insuspeitável, de que, a despeito de toda a crítica aos fundamentalismos, às doutrinas, aos dogmas, à epistemologia de "ovelha", o que governa essas consciências é a profunda saudade dos dias em que podíamos ser ovelhas - sem culpa de ser ovelha?

5. Vejam o caso do apelo a Nietzsche - o que é que se vai buscar nele? Só isso: a agressão à modernidade. Mas, alto lá, senhores, por que caminhais assim tão apressados, por que dizeis essas coisas com dez palavras, e por que quereis que as engulamos tão depressa? Quereis que deixemos escapar que o mesmo Nietzsche louva febrilmente a modernidade?, que com uma boca ele a agride e, com outra, a louva? Ide ler Losurdo, iluminados!

6. O Nietzsche que agride a modernidade é o aristocrata, que odeia a democracia, porque odeia a população, porque vê nela instrumentalidade bovina, rês gregária, besta humana, necessária para a ordem natural da civilização. Mas quê?! Os animais de carga querem, agora, sentar-se à mesa? Horror! É o mesmíssimo caso daquele senhor da RBS, apoplético, espalhando perdigotos na lente da câmera, atormentadíssimo e contrariadíssimo com o fato de que pobres, agora, têm carros, maldito aquele "analfabeto" que lhes deu lugar histórico! Esse Nietzsche é um homem profundamente triste e desgraçado, enamorando-se da estrutura de castas da Índia, tornando-se um darwinista social, um aristocrata radical, um homem superior.

7. Mas há outro Nietzsche, o aristocrata olhando para si mesmo, e, nesse momento, ele louva a modernidade, a crítica, a emancipação, o método - passagens que nunca se vêem citadas, são sempre aquelas mesmas frases contra-modernas que se vêem nos livros manjados da recepção "nietzscheana" do século XX. Se ao menos aprendessem a ler! Mas o que eu digo? Claro que sabem - e não é por outra razão que criaram formas de desler, teorias de desleitura - para, por meio delas, dormirem à noite. Relações de Força tem algo a dizer sobre fenômeno paralelo, nesse caso, quanto ao estruturalismo... Esse outro Nietzsche pensa assim: à plebe, a algema, a mim, a liberdade, a crítica, a lucidez de carne nua...

8. A ironia, mas talvez, a única forma de a modernidade vir à tona, é o fato de que é justamente a religião que a tratá. É verdade, eu diria, que sem os árabes não haveria modernidade, eles, os introdutores de Aristóteles no Ocidente. É verdade que sem a Renascença não haveria modernidade. Mas só o fato de a Igreja ter sido sua maior patrocinadora nos diz sobre os rumos que tomaria, fenômeno não muito distante de um "doutor da Igreja" aristotélico - castração da crítica disfarçada em teologia aristotélica! A despeito dessas duas marcas ocidentais, foi a Reforma protestante, isto é, a tolice protestante, que, deixando de dar ouvidos a Erasmo, trouxe para os templos o vírus do livre-exame (democracia e crítica - valores aristotélicos, usados como porrete na cabeça do Papa, mas caçados como a bruxas na topografia eclesiástica).

9. Isso nunca se dirá suficientemente alto: a aura "religiosa", o valor "divino" que esses princípios receberam, no Ocidente, mercê de Lutero e sua loucura (como não? - pergunte-se se alguma vez a usou intra muros... então pronto!), foi essa consubstanciação sagrada da crítica e da democracia, conquanto nunca formalizadas nem materializadas eclesiasticamente, que, espalhando-se pela cultura da Igreja, eclodiu em fenômenos de libertação na Inglaterra liberal (nascem os batistas! - mas era outra fraude), na França (Iluminismo), na Alemanha (Romantismo), nos Estados Unidos (República), na França (República) - tudo para maior glória de Deus. O diabo não faria melhor... Não fora o fato de que a revolução se fazia em nome de Deus (Christopher Hill), dificilmente o "valor" entraria na pauta da civilização moderna... Bendita ironia!

10. Pois eu não me constranjo de dizer: amo, profundamente, esses dias, amo, no limite da sanidade - se é que já não me tornei louco - esses valores. E tanto mais quanto foram paridos pela minha tradição religiosa, primeiro, protestante, depois, batista, a despeito de que, para ambas, na prática, tais valores sejam heresia e blasfêmia. Que seja.

11. Eu entendo que padres e pastores congreguem forças contra esses dias - e até sei que sua luta pode fazer recuar o tempo até os dias barrocos, de que sentem tanta saudade. O que não consigo entender é que filósofos deseperem-se quanto a isso, salvo, claro, se, no fundo, tanto quanto Platão nunca foi de fato filósofo, mas, cá entre nós, teólogo, também nossos amigos contra-modernos sejam assim: filósofos na casca, e teólogos, nesse caso, de luto, na alma. O que me deixará sem entender como poder ser, então, "filósofos" e democráticos ao mesmo tempo - já que, onde há Deus, não há democracia...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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