sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

(2011/044) Da "criação" como idiossincrasia da dimensão humana


1. Existimos, vivemos, estamos-aí, nessa faixa de existência, de vida, de estar-aí - nessa, precisamente, e não em outra. Não estamos situados nem no muito pequeno, nem no muito grande, nem no reino atômico, e daí para baixo, nem no reino planetário, e daí para cima. É aqui, nessa faixa "média" - mas, será mesmo "média"? - que nos encontramos. E, convenhamos, não sabemos quantas faixas há para cima, nem quantas faixas há para baixo. Sabemos, sim, é que há a nossa faixa de existência, e faixas acima e abaixo...

2. Foi quando começamos a criar coisas, a fabricar coisas - instrumentos, equipamentos, casas, sobretudo casas e vilas, e disso ter "consciência" - ações construtivas conscientes e conscientes de que são ações intencionais - que passamos a aplicar também ao "cosmo", nossa "casa", essa perspectiva: assim como criamos coisas em "nossa casa", alguém deve ter criado isso sobre o que, agora, nós criamos. Eu crio o instrumento de pedra, mas alguém deve ter criado a própria pedra... Eu crio a casa sobre a colina, mas alguém deve ter criado a colina... Eu crio o barco sobre o rio, mas alguém deve ter criado o próprio rio...

3. Evidentemente, não se percebeu a operação de fundo: o fato de aplicar-se ao "cenário" o critério antropológico (a rigor, biológico-vital) de "criação" - Homo faber - constitui um possível vício antropológico, que consiste em presumir que, se na faixa de existência em que eu vivo, eu crio coisas, logo, a própria faixa de existência em que eu vivo deve ter sido criada por alguém. Assim como eu, vivendo, crio coisas nesse mundo em que eu vivo, casas, vilas, barcos, alguém, vivendo em seu mundo, cria, intencionalmente, esse mundo em que agora vivo. Todavia, não é necessariamente verdadeira a inferência...

4. Talvez haja no muito pequeno alguma forma de existência que, afinal, seja não-criada e não-destruível, ab-aeterna, em que não se aplique os critérios de "fabricação" - intencional - próprios do meu mundo, de minha forma de existir, de minha faixa de existência, e que se transforme continuamente, numa progressão e evolução aberta infinita. Teria sido nossa consciência de que nós criamos coisas que teria aplicado à dimensão total da vida o conceito de criação, de modo que somos tomados pelo phatos de perguntar pela "origem" de todas as coisas, eventualmente pelo fato de que nós temos uma origem (um parto) e damos origem a muitas coisas - nossas cidades... Todavia, pode consistir essa operação em uma neurose, semelhante àquela de aplicar intencionalidade à natureza, porque somos atores intencionais...

5. Bem, talvez a criação seja uma operação não intencional do próprio Universo, de modo que nós fomos fruto desses processos dinâmicos de destruição e criação - transformação. Todavia, no fundo, tratar-se-ia tão somente da transformação do mesmo em outra coisa, mantida, no fundo do saco, a mesma substância, mas, à medida que se "sobe", percebem-se estruturas cada vez mais diversas, resultado de infinitas articulações e organizaçãoes daquela substância fundamental.

6. Nesse sentido, o que a nossos olhos parece "criação" consistiria no resultado de operações físicas próprias do que seja exatamente o Universo, e nós, a nosso modo, "criadores", projetamos no Universo a intencionalidade orgânica e intencional de nossos atos de criação. O que seria uma ironia, porque, apesar de projetarmos nossa intencionalidade e personalidade no Universo, nós é que seríamos a personificação inusitada das operações não-intencionais da dinâmica da matéria. Talvez, nesse caso, as teorias estruturalistas sejam exatamente o inverso das doutrinas personalistas - ou o sujeito personifica a matéria, ou é teoricamente despersonificado. Talvez seja a hora de aprendermos a pensar o próprio de cada dimensão, considerando o que passa de uma dimensão para outra, e o que é próprio de cada uma. Talvez seja apenas na nossa dimensão que exista isso a que chamamos consciência e intencionalidade... Talvez...

OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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