terça-feira, 14 de dezembro de 2010

(2010/636) O Nietzsche, de Losurdo, e Morin - a semelhança dos discursos não os faz equivalentes


1. Tenho gasto parte dos últiomos meses numa leitura lenta, em fogo brando, reflexiva ao extremo, da obra-prima de Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, e, ao mesmo tempo, tenho dedicado meus últimos seis anos a ler Edgar Morin. Estava agora há pouco lendo uma obra de Morin, Breve História de la Barbarie en Occidente, e deparei-me com o mesmo discurso de Nietzsche a respeito da relação entre civilização e barbárie. Mas é necessário que me explique.

2. Nieztsche afirmava que a violência da civilização, a escravidão, a distinção de classes, os benefícios das altas classes em detrimento das classes inferiores, eram necessários, inexoravelmente imprescindíveis, porque eram os meios pelos quais a vida produzia os gênios, fermentava a cultura, a arte - uma orgia necessária de morte, aos milhões, para a possibilidade de emergência dos quase-divinos, dos semi-deuses - da aristocracia. Daí a sua ira profunda contra a religião judaico-cristã, porque, reconhecia, tinha sido ela uma das forças motrizes do espírito revolucionário e democrático, que, nos termos do raciocínio do filósofo, constituíam prejuízo severo e incorrigível à Civilização, porque igualava as pessoas por baixo, impedindo, pela banalização da plebe - da "chandala", como ele dizia -, pela contaminação não-higiênica, acrescentava, o surgimento da genialidade, da alta cultura, da arte refinada, a cujo fenômeno se resume a função civilizatótria.

3. Pois bem. Morin escreve umas 40 páginas sobre a barbárie do Ocidente e no mundo de modo geral. Morin não é maniqueísta, longe disso. Seu pensamento caminha pela consideração, sempre, dos dois lados da mesma moeda, o lado positivo e o lado negativo. Sendo assim, Morin descreve uma onda de barbárie milenar que, no seu rastro, deixa, de um lado, destruição e, no outro, cultura e arte. Nos termos em que Morin descreve o processo, o florescimento da cultura e da arte, propiciados pela barbárie, se dá por conta dos encontros que a barbárie força entre os povos, pela fomentação de mestiçagens eventualmente não intencionais, mas que, por força da ecologia das ações, se estabelecem. A Espanha, ele dirá, por força de sua barbárie civilizatória no século XV e XVI, produzirá, todavia, Lope de Vega, Calderón, Góngora... Em resumo: a barbárie, a violência, a destruição, carregam consigo forças de civilização, de cltura, de arte.

4. O que Nietzsche diz em chave filosófica Morin o diz em chave histórica? Sim e não. É verdade que os dois estão olhando a História e vendo o mesmo fenômeno - a história humana não é a história do bom ou do mau, mas a históia do bom e do mau juntos, articulados, de modo que, do bom sai o mau e, do mau, o bom. A cultura e a arte não são fenômenos absolutamente separados da marcha bárbara da história - são-lhe intrínsecas. Nisso, vêm a mesma coisa.

5. Mas é aí que cessa a equivalência dos discursos. Segundo Losurdo, Nietzsche faz a denúncia de que o custo necessário e legítimo da civilização é a barbárie, a escravidão e a submissão da plebe às classes dominantes, porque tem por estratégia neutralizar o discurso revolucionário, nos termos do qual as classes dominadas devem ter condições de vida caracterizadas pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade. O que Nieztsche desejaria é jogar água na fogueira revolucionária: para que a revolução, se o que ela vai gerar é o fim da civilização, se aos homens menores está reservado o destino de servirem de adubo para que nasçam as grandes árvores civilizatórias? Ou seja: Nietzsche pretenderia desmistificar a realidade, para, de modo, a meu ver, cínico, revelar a nudez cruel da vida, razão profunda, ela mesma, da situação necessária da escravidão e da pobreza para o bem das classes superiores.

6. Morin, não. Morin é "revolucionário". "Haveria de se sublinhar a ambivalência, a complexidade do que é barbárie, do que é civilização, por certo não para justificar os atos de barbárie, mas para os compreendermos melhor e assim evitar que nos posuam cegamente" (Morin, Breve História de la Barbarie en Occidente, p. 39). Isso define a diferença. Morin é Marx. Não é Nieztsche.

7. Eu amei Nietzsche até ontem. Hoje, depois que Losurdo o descreveu - depois que mo apresentou, depois que tirou dele a roupa de festa com que lhe vestiram os filósofos da inocência - alguma coisa entre tolos e enganadores -, passei a não amar um dos dois Nietzsches, justamente aquele que, olhando para a revolução, demonizava-a. Mas aquele discurso libertário e de autonomia radical que ele aplicava a si mesmo e "aos seus" - isto é, à aristocracia -, eu, conquanto nada tenha com ela, ainda amo, e tento vivê-lo. Esse Nietzsche ainda amo - ainda que ele esteja, inteiro, dentro daquele outro, mau, cruel, aristocrático, insensível, divino...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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