2. A anáfora pode expandir-se e tornar-se mais criativa - transformar-se quase numa figura de linguagem. Vamos a um exemplo clássico. Assista a esse comercial da Mercedes.
6. Há casos assim na Bíblia. Muitos. E os há, porque quem os escreveu estava inserido numa rede sócio-política dinâmica. Quem escreve os textos biblicos não está a compor tratados monasteriais de Teologia - nem Romanos pode ser tomado como um "tratado", consistindo, antes, numa peça de convencimento rertórico-teológico de uma comunidade cristã do primeiro século. Sem que seja recuperada essa comunidade, esse contexto, Romanos pode "aceitar" qualquer interpretação. Os textos bíblicos têm pouca relação com os livros de Teologia, porque os livros de Teologia fala de alguma coisa, ao passo que os textos bíblicos falam para alguém. Um livro de Teologia poderá ser lido por um ET daqui a dez mil anos. Os textos bíblicos, também - mas sob a condição de o ET reconstruir os 13 mil que, então, os separarão...
7. Há, todavia, casos ainda mais específicos de anaforismo. Há casos em que o texto bíblico refere-se a termos, conceitos, discursos, mitos, que circulam no espaço sócio-político em que o escritor está inserido. Uma vez que essa circulação, para ele, escritor, é tão óbvia, pode ocorrer o caso de a sua referência se dar sem nenhuma indicação formal, principalmente quando, a juízo do escritor, a simples afirmação xis, o simples uso desse ou daquele termo, o simples fato de se dizer isso ou aquilo, provocaria, imediatamente, nos leitores, a intencionada transposição pragmática para o discurso, o termo, o mito, isto é, o referencial a que o termo, o discurso ou o mito se referiam, e do que dependiam para ganhar alma e vida, para serem adequadamente compreendidos.
8. Apresento um caso. Cântico dos Cânticos 7,11. Devo empregá-lo diretamente do hebraico, porque as traduções correntes, com raras, raríssimas exceções, não lhe fazem justiça, antes o adulteram, não sei se intencionalmente. Eis o texto hebraico:
9. Literalmente, deve ser traduzido: "eu [sou] do amado de mim, e para mim [é] o desejo dele". A Amada dá-nos essa declaração depois de uma dança. Sim, de sandálias, trajada como se fora, se já não é, uma "odalisca", ela serpenteara seu corpo diante do Amado, que a contempla desde os pés, o dradril, o umbigo, o decote, o nariz, a fronte, os cabelos, até o momento em que ele, tomado de desejo, corre até ela, e a agarra, e declara que as suas mamas são cachos de uva, o corpo dela, palmeira - na qual ele quer subir... E ele a beija sofregamente, ele, nao, o desejo dele a beija, que o Amado está totalmente tomado por ele, pelo desejo, está, assim, diríamos nós, hoje, "de quatro". E é em face desse estado de submissão libidinosa dele, a ela, que ela, olhando "para nós", isto é, para seus "leitores"/ouvintes, faz a declaração, que eu leria assim: eu até sou do meu amado, mas é o desejo dele que o traz a mim... De fato, foi ela revelar seu corpo, lascivo e morno, dançando eroticamente diante dos olhos do Amado e, pronto, coitado, caiu ele de quatro nas garras da felina...
10. Bem, mas refreemos nós outros nossos pensamentos, não perquemos de vista a "aula" em que estamos, e voltemos à questão: o que há de "anafórico" aqui? Bem, se dependermos apenas de Almeida, será difícil recuperarmos a referência. Mas, desde pelo menos a Reforma, aprendemos que é necessário ir aos "originais", e, apesar da depauperação da qualidade pastoral geral evangélica no Brasil, os Seminários ensinam, sim, hebraico e tradução, de modo que, se querem, podem, todos os formados em Seminários sérios, traduzir o texto bíblico. E é o que eu faço. E, por isso, peço que o leitor tome sua Bíblia caseira e leia, agora, Gênesis 3,16.
11. Mesmo sendo Almeida, é provável que a tradução que você tenha consultado seja razoável. Literalmente, eis a tradução: "e para o homem de ti [será] o deseo de ti / e ele [é que] dominará sobre ti", ou, num formato mais fluente, "o teu desejo será para o teu homem, e ele te dominará". Estamos diante de uma declaração sacerdotal. Eu - nisso, seguindo alguns recentes exegetas europeus - dato a passagem no pós-exílio, em algum lugar entre 515 e 450, imediatamente após a ascenção teocrático-sacerdotal ao poder de Judá, época em que o coração da fé judaico-cristã foi moldada - e esse coração é mau, profundamente mau. Não foi suficiente um contra-sacerdote, como Jesus parece ter sido - foi rigorosamente sobre as falas dos sacerdotes judeus dos século VI e V que nossa fé foi construída, e não é por outra razão que a história das mulheres em nossa história foi o que foi - e é o que é...
12. É importante saber que Gênesis 3,16 constitui, pois, uma declaração político-religiosa, que põe a mulher - genericamente, mas, em termos históricos, determinadas mulheres, a rigor, as profetizas e sacerdotizas da religião popular - em situação de submissão inexorável aos maridos e aos homens de modo geral. E mais - essa situação de domínio do homem sobre a mulher é naturalizada, digamos assim, posto que ela é cravada no útero da mulher: é o desejo da mulher, é seu próprio impulso sexual que a faz dirigir-se ao homem, querê-lo, querer pôr-se sob ele, posição que a referência sexual de Gênesis 3,16 ilustra na forma de uma maldição divina. Não que a situação da mulher fosse muito boa no período pré-exílico, mas, tenha sido qual foi, não se compara, arrisco dizer, ao que o enfrentamento entre a religião oficial do Templo e contingentes de liderança político-religiosa feminina fez das mulheres, em Judá, depois da reconstrução do Templo.
13. Não se vá, todavia, achar que as mulheres da época louvaram ao Senhor por essa "revelação" de Gênesis 3,16. Certo, depois de décadas de catequese - malditas catequeses! - suas netas viverão crendo que seu corpo é maldito, seu desejo é maldito, elas mesmas são malditas. Aqui e ali haverá resistência - veja-se o mito de Lilith, que judeus compuseram: Eva é a segunda mulher que Yahweh criou; a primeira, fora Lilith, que Yahweh expulsou do Paraíso, porque ela se recusava a deitar por baixo; e, então, Yahweh criou Eva, boazinha Eva, que se deixa deitar por baixo, lugar de mulher... Lá e entáo, todavia, quando o primeiro sacerdote - o exército Persa a lhe dar suporte - proclamou essa ancestral "poesia" biblica, imagino que muitas mulheres fizeram como aquela de Os Pilares da Terra:
"Ouviu-se um grito e todos olharam para a garota. Mas não foi ela quem gritou, e sim a mulher do cuteleiro, ao seu lado. No entanto, foi a garota a causa do grito. Ela havia mergulhado de joelhos na frente do cadafalso, com os braços esticados, a posição adotada para rogar uma praga. Todos recuaram, aterrorizados: sabiam que a praga de quem sofreu injustiça é particulaermente efetiva, e todos suspeitavam que havia qualquer coisa de errado naquele enforcamento. Oa meninos pequenos ficaram aterrorizados. A garota voltou os hipnóticos olhos dourados sobre os três estranhos, o cavaleiro, o monge e o sacerdote. Depois proferiu sua praga, pronunciando as palavras terríveis em tom retumbante: - Amaldiçôo vocês com a doença e o infortúnio, com a fome e a dor; sua casa será consumida pelo fogo, e seus filhos morrerão na forca; seus inimigos prosperarão, e vocês envelhecerão na tristeza e no remorso, e morrerão na podridão e na agonia... - À medida que pronunciava as últimas palavras, a garota enfiou a mão num saco que estava no chão ao seu lado e puxou um galo vivo. Apareceu uma faca na sua mão, surgida do nada, e com um único golpe ela cortou a cabeça da ave. Enquanto o sangue ainda estava jorrando do pescoço cortado, ela atirou o galo degolado sobre o sacerdote de cabelo preto. Não chegou a alcançá-lo, porém o sangue espalhou-se nele, no monge e no cavaleiro, um de cada lado. Os três homens viraram-se enjoados, mas o sangue borrifou em cada um deles, sujando-lhes o rosto e a roupa. A garota voltou-se e saiu correndo" (Ken Follett, Os Pilares da Terra, 1, Círrculo do Livro, p. 16). [Confesso que a leitura dessa cena, há tantos anos, marcou minhas retinas... Por um instante, julguei que se tratasse de Blimunda, de Memorial do Convento, outra fera indomável. Mas não. Saramago até a podia ter criado, sim, mas ela é filha de Ken Follett. E ela representa bem o tipo de resistência que a primeira geração de mulheres aviltadas pelo sacerdócio teocrático de Jerusalém exerceu em Judá. Não é à toa que os apócrifos arrostarão às mulheres a pecha de bruxas...].
14. Todavia, nem todas as reações foram assim. Tudo me força a crer que Cântico dos Cânticos esteja construído em torno desse verso-maldição de Gênesis 3,16, para, primeiro, negá-lo, depois, invertê-lo e, finalmente, anular a sua eficácia, e isso por meio da redação de uma contra-tragédia, que eu cuido ter recuperado, e que, se me for fiel a mim mesmo, publico em 2011. É mais difícil de perceber em Almeida, mas Cântico dos Cânticos 7,11 é uma referência direta a Gênesis 3,16. Trata-se não apenas do mesmo termo - desejo (que as versões traduzem, meu Deus!, como "saudade", "afeição", "amor", em Cânticos, conquanto traduzam por "desejo", mesmo, em Gênesis - pobres de quem depende das nossas traduções!) -, mas, inclusive, da mesma sintaxe.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Ei! Gostei desse post. Pq será? abração!
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