domingo, 28 de novembro de 2010

(2010/598) Ainda sou protestante?


1. Eu ainda sou "protestante"? Bem, sim e não - como sempre fui esse sim-protestante e esse não-protestante, ao mesmo tempo em que sempre fui esse sim-batista e esse não-batista. Há, na realidade, muita proximidade entre o Protestantismo (século XVI) e a tradição batista (século XVII), ligeiramente mais nova. E devo dizer que as razões que me fazem um não-protestante são as mesmas que me fazem um não-batista, e as razões que me fazem um sim-protestante são as mesmas que me fazem um sim-batista, eu, esse não-sim-protestante.

2. Trata-se dos princípios. Ainda acredito profundamente, existencialmente, nos princípios protestantes e, extensivamente, nos princípios da tradição batista, ainda mais especificamente, nos Princípios Batistas (para estes, a rigor, depende muito do que se está querendo indicar com o termo, porque aquilo é uma salada de princípios e doutrinas, convenhamos, que conviria separar), naquilo que eles têm de princípios.

3. Anima-me o princípio do sacerdócio universal do crente. Todavia, anima-me a sua versão, digamos, 3.0. O Protestantismo não o levou de todo a sério. Na prática, os pastores protestantes - os evangélicos, então, nem se fala! - só não carregam o nome de "padre", mas comportam-se rigorosamente tal e qual, com a vantagem de que podem praticar sexo! - o que não é pouco, hã!?... Digamos que, no protestantismo clássico, a versão desse princípio, 1.0, tenha mais servido como retórica de contra-identidade, em face dos adversários católicos, do que tenha propriamente assumido a condição de um valor levado a sério, seja pelo "clero", seja pelo "laicato". Os pastores sempre foram vistos, e ainda são, como gente mais próxima de Deus, porta-vozes do divino... Protestantemente, são nada. E não seria necessário esperar o século XIX para o dizer: para todos os efeitos, o Protestantismo estabeleceu a inutilidade sacerdotal, já que eu mesmo constituo meu sacerdote, eu mesmo, por meio de mim mesmo, chego a Deus.

4. Já a versão 2.0 do "princípio protestante do sacerdócio universal do crente" constituiria aquela abrangência mais radical desse discurso, uma transformação ainda inimaginável das relações eclesiásticas, a supressão da figura do "pastor" como regente do coro da fé, como zelador das doutrinas. Bem se vê que isso é absolutamente improvável de vir a acontecer. Acabam-se as igrejas como um todo, mas o clero... No final, idos todos para seus caminhos, permanecerão à porta quatro ou cinco pastores, perplexos... porque a Igreja até morre, mas o clero, não.

5. Mas eu quero é a versão 3.0 - o Protestantismo levado a sério e aplicado a todos, indistintamente: não apenas aos homens protestantes, mas, igualmente, às mulheres; não apenas aos protestantes, mas a todos os religiosos, indistintamente; não apenas a todos os religiosos, mas a todos os homens, indistintamente. Começamos uma coisa, e não a terminamos: e não a terminamos, porque não queremos terminar. Fizemos as contas da altura da torre, calculamos o volume de tijolos, o custo, a quantidade de operáros: podíamos ter construído... Mas não quisemos, não queremos, não quereremos. Uma religião em que todos são sacerdotes só pode dar no XIX - e, para o Protestantismo, o XIX é o diabo, o que o "salvador" do Protestantismo clássico, Barth, depressa entendeu, depois de duas e três aulas de Harnack...

6. Outro princípio protestante que anima a minha alma, e me faz, digamos assim, cantar louvores, é o princípio do livre-exame das Escrituras. Novamente, o Protestantismo ficou na versão 1.0, apenas no estilo "somos livres para interpretar do nosso jeito, o que significa que não somos obrigados a interpretar como o papa interpreta". Mas não é sério crer que algum dia tenha passado pela cabeça de Lutero que esse princípio significasse o que veio a significar mais recentemente. Para Lutero, todos os luteranos só podiam interpetar... "luteranamente"... Versão 1.0.

7. Quero versões avançadas desse princípio, aquelas que a própria história do Protestantismo inventou, e que ficou madura ali por volta de 1750, com a regência histórico-filológica do processo, a adesão da exegese bíblica aos princípios histórico-críticos, que a "tradição", conservadora e reacionária, abomina, mas eu adoro, e com o rompimento formal com o regime de coação dogmática das rotinas hermenêuticas. Não duvide, meu caro leitor - a dogmática ainda controla o processo, mesmo nos lugares mais insuspeitáveis.

8. A versão 1.0 desse princípio é uma piada - de mau gosto. Ela carrega em si, ao mesmo tempo, um grito de liberdade, em face de Roma, e um grito de opressão, em face dos fiéis. Dá-se, com ela, uma fraude - que, em outro modelo, ressurge, agora, como "teopoética", em algumas expressões que ela encarna (mas trato disso depois). O sistema por trás da versão 1.0 faz a interpretação gravitar em torno do dogma, da tradição, que, por sua vez, contitui como que um espírito invisível, mas eficiente, pousado sobre a Bíblia-monolito. Quando o leitor abre a Bíblia, é a esse espírito-dogma a que passa se referir toda a leitura que ele faz. Não, as palavras não têm, aí, mais qualquer relação histórica com quem as escreveu. O leitor, programaticamente, opera seu sentido, puxando fios de ouro, apertando botões devocionais aqui e ali, administrando a boca do grande Livro ele mesmo, chamando a isso ... iluminação!, e tirando daí as doutrinas da catequese. Cada qual, da sua, naturalmente...

9. A história do Protestantismo e dos batistas é a história das reações criativas e das contra-reações às próprias reações criativas. Explico o que quero dizer: o discurso protestante e batista foi, sempre, reagente. A "criatividade", aí, surgia na forma de modos de reação, discursos de reação, de um lado, ao catolicismo e, de outro, à Igreja inglesa - da mesma forma como o Romantismo alemão surge como reação ao Iluminismo francês. Nesse sentido, a "pressão" dos adversários como que espremia do corpo protestante e batista a saída criativa, o contra-discurso - cujo referencial estabelecia os seus limites de validade. Uma vez que tanto uns quanto outros enfrentavam inimigos julgados opressores, não havia outro modo que não forjar um contra-discurso libertador, um discurso que desempoderasse o inimigo, e, ao mesmo tempo, desse ao portador da palavra reagente o poder e a liberdade de autodeterminar-se. Não é por outra razão que os princípios protestantes e batistas são libertadores...

10. Todavia, tão rápido quanto sacadas contra o inimigo externo, as espadas desses princípios podiam - e podem - ser usadas também dentro dos muros. Se Lutero pode interpretar livre do papa, eu também posso interpretar livre... de Lutero! Não, não pode!, gritará, incoerentemente, a Tradição. A verdade não tolera dúvidas nem críticas, advertirá a Hipocrisia. Os princípios protestantes e batistas criaram-se como guarda-chuvas, casamatas, bunkers, contra os outros. Internamente, todavia, vale outra Tradição - a mesma contra qual lutaram, para nascer, protestantes e batistas... Cosmogônicos, para fora, heréticos, para dentro, transformam-se os princípios em verbetes de folhetos - e só. Bem, ao menos é o que a Tradição pensa, porque o efeito libertador desses princípios criou raízes, floresceu - não se pode acender a luz e a pôr sob o alqueire - nem mesmo aqueles cuja história é uma fábrica de alqueires...

11. Pensando assim, nesse último aspecto, meu corpo sente asco dessa tradição, e quer negá-la. Natural. Tem-se que estar absolutamente descerebrado para não se deparar com a hipocrisia que caracteriza a vida evangélica - há quinhentos anos. Todavia, há que haver lucidez, e ela deverá ser maior do que o nojo. Se tranqüilizo meu coração, se respiro fundo, e ouço o discurso protestante, não posso deixar de admitir que é ele, e nenhum outro, que está fundamentado no último milímetro do poço da minha alma, e é sobre eles, os princípios, que todos os andares da catedral da minha fé e esperança estão sobre-erguidos. Se eu me olho no espelho, o que vejo, lá, é um protestante e um batista - mas se e somente se os critérios são aqueles - os princípios, e, ainda, se lidos na ótica radical com que vergo o eixo axiológico de sua potência semântica.

12. Penso que é uma questão de maturidade. Não há para onde ir. E, todavia, corre-se o risco da "paixão" platônica, da idealização de um lugar inexistente, de uma utopia que não é utopia, mas mero mito afetivo... É verdade. Corro esse risco. E como o afasto?, como torno real o meu apego a esses valores? Encarnando-os, vivendo a minha vida na consciência inegociável de que sou meu próprio sacerdote, tanto quanto qualquer um o é de si, e que as Escrituras pedem radical liberdade no regime de interpretação. E nisso se resume minha profunda dependência dessa tradição...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Debbie Seravat disse...

Olá!
Por gentileza, gostaria de saber que princípios batistas são esses, porque este do qual faz mênção também o considero muitíssimo, na categoria de princípio bíblico.
Obrigado.
Alberto, esposo da Débora, sua fã.

Peroratio disse...

Alberto, tudo bem? Você pode ler os Princípios Batistas no site da CBB. Dou o link: http://www.batistas.com/index.php?option=com_content&view=article&id=16&Itemid=16, mas, se você clicar na expressão Princípios Batistas, no texto, vai abrir a mesma janela. Mas faço uma advertência - como eu disse, esse texto misturou princípios e doutrinas. Quando falo dos Princípios, falo apenas dos princípios em si, mas não das doutrinas. Por exemplo, as seguintes seções:

1.2 "O indivíduo tem que aceitar a responsabilidade de estudar a Bíblia, com a mente aberta e com atitude reverente, procurando o significado de sua mensagem através de pesquisa e oração, orientando a vida debaixo de sua disciplina e instrução"

2.3 "Os batistas consideram como inalienável a liberdade de consciência, a plena liberdade de religião de todas as pessoas. O homem é livre para aceitar ou rejeitar a religião; escolher ou mudar sua crença; propagar e ensinar a verdade como a entenda, sempre respeitando direitos e convicções alheios; cultuar a Deus tanto a sós quanto publicamente; convidar outras pessoas a participarem nos cultos e outras atividades de sua religião; possuir propriedade e quaisquer outros bens necessários à propagação de sua fé. Tal liberdade não é privilégio para ser concedido, rejeitado ou meramente tolerado – nem pelo Estado, nem por qualquer outro grupo religioso – é um direito outorgado por Deus.
Cada pessoa é livre perante Deus em todas as questões de consciência e tem o direito de abraçar ou rejeitar a religião, bem como de testemunhar sua fé religiosa, respeitando os direitos dos outros" e outros.

Vou escreveu um texto sobre isso, ou uma série, talvez ajude.

Um abraço,

Osvaldo.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio