quarta-feira, 24 de novembro de 2010

(2010/577) "Os pobres, sempre os tereis convosco"...


1. Os Evangelhos carregam essa "chaga". Bem, "chaga" sob minha perspectiva, mas, a rigor, trata-se de uma constatação de longa data - a vida humana, essa correição de dor e sofrimento para muitos, para tantos, para quase todos, ora, é a pobreza que a define, enquanto o luxo, o conforto, o bem-estar, se resume a uma fruição de poucos, de bem poucos. É verdadwe que, conforme aquele nobilíssimo cavalheiro disse outro dia, megafonicamente, desde a tribuna da afiliada da Globo, agora, no Brasil, onde se assiste à presidência de, segundo ele, um governo espúrio, qualquer miserável pode comprar um carro. É claro que bem-estar não se mede apenas pelo poder de compra de um popular em 72 pretações - mas o ataque apoplético do cidadão de bem, metido em ternos e maquiagens de TV, creditado à ira pela ascenção de miseráveis é bastante reveladora dos caminhos por que os argumentos das elites, dos ricos, dos poderosos, enfim, são traçados - sim, ira e nojo de pobre, uma "síndrome da distância", que, em terras brasileiras, é conhecida como síndrome da "Casa Grande".

2. Essas observações estão sendo arrancadas de mim, confesso, por conta da leitura de Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata. Tão impiedosamente quanto Nietzsche desmontou a moralidade teológica ou a teologia moral, Losurdo desmonta, pedaço a pedaço, como quem desmonta um lego, a recepção metafórica de Nietzsche no século XX. Até agora, havia se referido a Heidegger e a Vattimo, mas, hoje, começou a desmontar, inclusive, o insuspeitável Ricouer. Não vai ficar pedra sobre pedra - e é por isso que, dentre tudo quanto há na Universidade, nas Humanas, delicia-me, hipnotiza-me, a História: você pode falar a asneira que for - e asneira vende! Vem um historiador indiciário e desmonta tudo. A única forma de a ilusão retórica permanecer é que o seu efeito seja tão forte que o leitor prefira a mentira bem contada à verdade demolidora - e ouvi isso, em outras palavras, esses dias, exatamente sobre Losurdo e Nietzsche...

3. Eu já sabia que Nietzsche não gostava de Rousseau, e que, por outro lado, alimentara profunda admiração, por um bom tempo, por Schopenhauer. Losurdo conta por que. Rousseau defendia os pobres, e denunciava que a sua vida miserável se devia à opressão dos ricos. Com efeito, já lera em István Mészáros (A Teoria da Alienação em Marx) que Marx discordava da "saída" que Rousseau propunha para a condição do trabalhador, mas não da "entrada". O dignóstico, até certo ponto, é coincidente, e Losurdo deixou isso ainda mais claro, pintando com cores bem vivas, o estado de opressão civilizatória em que o pobre, trabalhador ou escravo, se enconra desde sempre, e ainda em seus dias (século XVIII).

4. Num capítulo particularmente revelador, Losurdo explica que a crítica da ideologia, em si mesma, não significa necessariamente nada. Ele demonstra como Rousseau, Schopenhauer e Nietzsche, além de Marx, claro, denunciam a mesma condição de miséria e sofrimento dos pobres - e isso por imposição da classe dominante, sempre. Todavia, enquanto Rousseau e, a seu modo, Marx, fazem a crítica da ideologia para enfrentarem a situação, na tentativa revolucionária de corrigirem o "pecado" instalado no coração da civilização, Schopenhauer e Nietzsche o fazem tão somente para demonstrar como o discurso da burguesia "revolucionária" é inócuo, porque a condição do trabalhador não é em nada substancial e essencialmente diferente da do escravo. Nietzsche defende despudoradamente a escravidão, sob a alegação de que o ócio dos nobres, da "elite", dos endinheirados, não prescinde do sacrifício da massa. Nietzsche e Marx são antípodas. Não podiam ser mais antípodas do que são.

5. Um dos argumentos que surgem na defesa da escravidão é que a condição do pobre, trabalhador ou escravo seja ele, é "natural". Já en Aristóteles, os escravos eram considerados aimais inferiores, da mesma categoria do boi, conquanto fossem antropologicamente semelhantes aos homens livres. Mas não eram verdadeiramente homens. Da mesma forma, o fato de as massas de proletários e escravos - Nieztsche passa pelo período da Guerra de Sesseção estadunidense! - não se podem comparar aos poucos homens nobres, a elite rica - e em Nietzsche é disso que se trata, da riqueza e da nobreza, mais do que da raça em si. Os pobres têm sob si o destino de servir de "adubo" para a colheita da cultura e da arte superior... Que honroso destino tem a massa ignara e suja - servir de escabelo para os pés do gênio! Há um toque divino em Nietzsche, não há não? Entendem-me? Captam-me a ironia mordaz? Mais um centímetro e Nietzsche torna-se gêmeo de Calvino...

6. Todavia, argumento eu, se a situação desses pobres, escravos ou trabalhadores - e fala-se de crianças de cinco anos, com jornadas de doze horas de trabalho em fábricas de tecidos! - é, como se disse, "natural", isto é, é seu "destino", bem, então isso de fato faria deles animais de carga. Bois, por exemplo. Com efeito, sob determinada ótica - a do homem, é claro! - o boi está aí para servir, primeiro ao trabalho, o arado, a carroça, o moinho, depois, de fornecedor de leite, por exemplo, de estrume, e, finalmente, para entregar a carne. A sua situação é tão natural que não se verá um Marx dos bois, um Espartacus do gado, uma "Revolução Francesa" na boiada - jamais. Bois são bois, e morrerão nessa condição. Já os pobres...

7. Nietzsche tem em mira o rebaixamento moral da compaixão humana, o que ele considera uma doença, uma fragilidade. Ele sabe que a compaixão é a desgraça do privilégio dos ricos! Nesse ponto incide todo o seu ódio ao Cristianismo - ao menos nesse campo. O rico não pode se dar ao luxo - não a esse! - de ter compaixão do pobre, quanto mais ressntimento venha lá de baixo. É da combinação de ressentimento do pobre e compaixão do rico - duas mazelas civilizatórias - que a revolução aproveita. Daí, deve-se lutar, primeiro, contra a inveja e o ressentimento da massa, da "plebe", da "chandala", todos termos que Nietzsche usa costumeiramente, e, imediatamente, tornar o coração uma pedra bruta, protegida da compaixão. Pobre é pobre, tem seu destino, e o rico, o nobre, não pode fugir ao seu, de subir sobre os corpos deles e cumprir sua própria sina. A Civilização impõe o sacrifício dos pobres! Nada se dissimula aqui - Nietzsche usa todas as palavras possíveis - talvez, daí, a necessidade de a Filosofia do XX ter que inventar um Nieztsche para si...

8. Mas... penso cá comigo: se é natural essa condição, se é natural que o pobre sofra para benefício exclusivo do rico, de onde vem, então, a revolução? E se Nieztsche está certo dessa condição natural do pobre, sepre destinado aos calcanhares do rico, de onde vem, então, seu medo da revolução, seu muchocho? Por que, tão logo saiba de sua capacidade, tão logo lhe chegue aos ouvidos notícias de "direitos", ele, o pobre, as agarre, as notícias e, em nome deles, os direitos, grite? A revolulção não é, afinal, um "evangelho"? Mas - se a situação toda é natural, deveria ser igualmente natural a sujeição inexorável das massas, não? Como a serpente surda aos encantos, massa alguma se deixaria fermentar por palavras anti-naturais de sublevação da ordem - não? Os bois não estão-nos sujeitos? Os cavalos? As ovelhas? E por que cargas d'água não seus correlatos antropológicos - os pobres?

9. Cá entere nós - esse discurso de Nietzsche me lembra bem, guardadas as devidas proporções e os respectivos contextos, o discurso filosófico da moda: você monta discursos sob a encomenda de seus interesses, tão despudoradamente quanto possível e, se a realidade não confirma o que você diz, você desconsidera a realidade, diretamente, como um Rorty, mais sinuosamente, escorregadiamente, como um Vattimo. Os argumentos de Nietzsche a respeito da situação do pobre apenas caminham na direção de tentar garantir a manutenção dos privilégios nada naturais, mas obtidos por meio da mais-valia, do mais-trabalho, da força, da exploração, da opressão, da sujeição - que ainda permanecem na relação de trabalho do século XIX, XX e XXI. Nisso estão todos certos: as relações capitalistas de trabalho pouco mudaram em relação às escravocratas - em certo sentido, degradaram-se. Todavia, não há absolutamente nada de natural nisso: o homem não nasce rico e nobre, faz-se, assim como não nasce pobre e escravo, é feito: são as relações sócio-políticas, logo, o mundo humano, não o mundo natural, o responsável por essa situação, que os ricos e nobres apenas defendem - bem como seus arautos, como Neitzsche - porque defendem sua própria situação de benefício sádico, em detrimento da massa sofredora.

10. Eu nunca entrei nessa história de metáfora, de modo que o tombo que estou levando com a leitura de Losurdo não é assim uma coisa de me deixar com todos os ossos quebrados - e, no entanto, como dói a surra que levo desse historiador, Losurdo. Fico imaginando quantos ossos permanecerão inteiros nos corpos da longa fileira de metafóricos que têm em Nietzsche o dissolvedor da concretude, da realidade, o promulgador da civilização de metáfora - muito ao contrário, ele foi o defensor mais ferrenho que se viu da tese da necessária opressão do pobre. Se a Teologia da Libertação tem em Marx seu Deus (Paulo Freire considerava Marx e Jesus seus camaradas...), eis, revelado, agora, seu diabo... E, para não esquecermos disso: da boca de quem se terá ouvido que os pobres, sempre os teremos entre nós? Que Deus foi esse que, antes de Nietzsche, afinal, naturalizou a pobreza? A serviço de quem ele se teria assalariado, fazendo-se, assim, também ele, um pobre desgraçado?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

PS. sobre a corrente metafórica, também essa da recepção de Nietzsche, vale o que tenho dito: é a corrente do dizer igual para manter-se tudo como está, mas sem o preço de chegar a ter de defender o descaramento das relações que produzem o que aí está: se o que está aí foi construído pelas relações de opressão, como manter o que está aí, sem a manutenção da mesma opressão? Nesse caso, há mais nobreza, de fato, em Nietzsche, que falava o que lhe ia nas tripas. Agora, defender, ao mesmo tempo, o pobre e a "tradição", e para isso utilizar-se a metáfora, aplicada, ainda por cima, ao despudoradamente aristocrata e escravocrata filósofo alemão, beira o cinismo...

4 comentários:

Debbie Seravat disse...

Olá!
Por influência sua, a pedido meu, ganhei de presente do meu marido o livro de Losurdo, hoje, dia do meu aniversário. Ainda sem tempo para ler, aguardo minhas férias da faculdade.
Amei o livro! Amo Nietzche! Fica na minha cabeceira ao lado da minha bíblia.
Estou amando as suas colocações. Quando me entregar à leitura, precisarei, com certeza, de sua ajuda.
Abraços.

Peroratio disse...

Conte comigo - se eu puder ajudar...
Osvaldo.

Joe Black (Joevan Caitano) disse...

Débora...vc pensa igualzinho a mim: Cristo em Nietzsche...
Biblia e Nietzsche na cabeçeira da cama..
falando nisso, hoje fui a biblioteca do Instituto Goethe e já catei o tijolão Nietzsche, o aristocrata rebelde...só devolverei no final de janeiro...vou mastigá-lo frase por frase.
Tô tb com Fragmentos do Espólio do Nietzsche q sao dois volumes (tijolinhos tb)...
Abraços
Joe
Apóstolo da Igreja Cristo em Nietzsche
rs

Peroratio disse...

Joe, será preciso fazer uma boa prestigiditação para juntar os dois: Jesus andava com pobres, com os oprimidos, os desqualificados, a chandala; Nietzsche diz que até o cheiro deles contamina, e que é preciso manter distância. Um é o amigo dos pobres, outro, seu indiferente aristocrata, defensor de sua condição rebaixada e servil, de seu gueto existencial. Em que pese a genialidade e a lucidez filosófica de Nietzsche, admiráveis, ele é um dos detratores da campaixão, com tudo o que isso significa. Talvez possamos pegar a lucidez moral e teológica de Nietzsche, sua lucidez filosófica, e somar a ela a compaixão do Cristo - talvez por aí dê.

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