1. Há uma contradição essencial na fé cristã. Com "fé cristã", aqui, refiro-me à plataforma inteira do Cristianismo, fundamentalmente a sua base teórica, judaico e helênica ao mesmo tempo. O Cristianismo bebeu na taça do Judaísmo e, ao mesmo tempo, bebeu na taça do Helenismo. Uma vez que todo o Cristianismo consiste num amálgama de tradições de outras culturas religiosas - judaicas (logo, cananéias), babilônicas, persas, gregas, romanas -, não seria nenhuma novidade, muito menos uma contradição esse fato de dupla dependência fundamental. Todavia, quando se olha de perto a essência judaica e a essência helênica, e se revela a sua discrepância filosófica inexorável, percebe-se, então, a inevitabilidade da rachadura.
2. O Judaísmo é concreto. Assenta-se sobre a cosmogonia clássica do Oriente Próximo, que faz da "terra" onde se vive - não, não se trata do "Universo", em nenhum sentido, mas, apenas, da "pátria", por assim dizer - o lugar de bênção, essencial, carregado de sacralidade e sentido. Não há uma concepção filosófica de "Ser" para ajém da realidade da "terra" e da "criação", não há uma bipartição da esperança: ela se dá aqui e agora, porque a vida se dá aqui e agora. Até os deuses, ou o deus, tanto faz, são pensados na sua relação com essa terra - "a terra", bendita terra da promessa... Não, meus queridos, isso nada tem a ver com um céu de algodão e anjos com asas de ganso... Não ainda...
3. No helenismo, entretanto, tudo é o contrário disso. Pelo menos naquele helenismo que escorre da taça servida por Platão. De pronto: a matéria, a "criação", não é boa, não é "divina", pelo contrário, está carregada de contaminação, não tem fundamento nem essência, é ilusória, lamacenta, turva, falsa - é maya. Por conseguinte, se do que se trata é da relevância da vida humana, uma vez que a matéria, o mundo, não tem relevância nenhuma, segue-se que o homem não pode ter parte verdadeira com o mundo (se quer ser relevante e ter relevância!), de modo que se deve pôr a sua origem, a sua casa, de verdade, fora do mundo, lá, na espuma metafórica das idéias sem fundamento. Anote-se no canto da página, todavia, que, nas iorigens gregas, lá está a mesma terra, em estilo judaico - foi a filosofia do nojo, escondendo de si Deus sabe o que, que transformou a verdade grega em libido e desejo pela espuma do pensamento...
4. Aí, meu amigos, a conta não fecha. Esse mundo das idéias, sabemos, constitui abstração noológica - explico: um mundo de pensamento, não-físico, real, em sentido metafísico, existente na estrutura organizacional das coisas, na sua essência e programa, mas não fisicamente. Logo, os deuses e o mundo dos deuses trazem ao homem a dimensão do quimérico, do fantasioso, da imaginação, do que é propriamente da ordem das visagens - características essas que são aquela marca fundamental do Homo sapiens, isto é, não são reprováveis em si mesmas, pelo contrário, o que seria da vida humana sem os delírios da imaginação e do sonho?
5. Todavia, o homem é, sobretudo, o corpo que ele é - ao contrário do que aprendemos de Platão, vamos aprendendo que é o corpo também quem pensa! Ah, o pensamento, propriedade emergencial da matéria!... Com isso não se contava, nem em Roma nem em Wittenberg... A espiritualidade, meus amigos, tendeu, por força desse patrimônio platônico, a escapulir pela janela da matéria e a refugiar-se no limiar da transcendência. Deus e o mundo de Deus atraem as pessoas para a sua mais absoluta descorporização - a fé se torna incorpórea, a esperança, descarnada, a caridade, converte-se em sentimento... vazio. Mesmo os bons teólogos, sem ironia, ainda se agarram a uma espiritualidade psicológica, a um fundamento imarcescível de glória, a uma essência fantasmática de contemplação para fora da vida, e a isso chamam vida! Ah, o terror do reducionismo biológico, eles dizem, assustados... temerosos de descobrirem que somos o que somos...
6. Quanto a mim, espero o dia em que faremos as pazes conosco mesmos, reinventando a espiritualidade como viagem para dentro de nós - e dentro de nós lá mesmo, não um dentro de nós espectral e ectoplasmático, a dança imaterial das caveiras de plasma. Não! Dentro de nós, isto é, em nosso sangue e carne, em nosso cérebro. Espero a brisa do dia em que a compreensão de como funcionamos seja a nossa adoração, o dia em que aprendamos que todos os nosso deuses são mitocondriais e sinápticos, hauremos disso todas as conseqüências e, em lugar de luto e lágrima, experimentemos o banquete da libertação desse mesmo sofrido corpo.
7. Mas esse dia está longe. Qão longe? Ah, muito. Eu diria que, todavia, acumula-se um cabedal de informações científico-cognitivas a nosso respeito, e de tal modo se avoluma que, mais cedo ou mais tarde, como caíram as muralhas de Jericó, cheguem a ruir os casebres platônicos da espiritualidade. E ficaremos um bom tempo a nos estreolharmos, surpreendidos de como fôramos tão simplórios em nossa ilusão desmedida... Nesse dia, senhores, haverá honra maior para o Espírito do que habitar o templo que, cuidamos, ele habita?
https://www.facebook.com/osvaldo.l.ribeiro/posts/808776322536273
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. O Judaísmo é concreto. Assenta-se sobre a cosmogonia clássica do Oriente Próximo, que faz da "terra" onde se vive - não, não se trata do "Universo", em nenhum sentido, mas, apenas, da "pátria", por assim dizer - o lugar de bênção, essencial, carregado de sacralidade e sentido. Não há uma concepção filosófica de "Ser" para ajém da realidade da "terra" e da "criação", não há uma bipartição da esperança: ela se dá aqui e agora, porque a vida se dá aqui e agora. Até os deuses, ou o deus, tanto faz, são pensados na sua relação com essa terra - "a terra", bendita terra da promessa... Não, meus queridos, isso nada tem a ver com um céu de algodão e anjos com asas de ganso... Não ainda...
3. No helenismo, entretanto, tudo é o contrário disso. Pelo menos naquele helenismo que escorre da taça servida por Platão. De pronto: a matéria, a "criação", não é boa, não é "divina", pelo contrário, está carregada de contaminação, não tem fundamento nem essência, é ilusória, lamacenta, turva, falsa - é maya. Por conseguinte, se do que se trata é da relevância da vida humana, uma vez que a matéria, o mundo, não tem relevância nenhuma, segue-se que o homem não pode ter parte verdadeira com o mundo (se quer ser relevante e ter relevância!), de modo que se deve pôr a sua origem, a sua casa, de verdade, fora do mundo, lá, na espuma metafórica das idéias sem fundamento. Anote-se no canto da página, todavia, que, nas iorigens gregas, lá está a mesma terra, em estilo judaico - foi a filosofia do nojo, escondendo de si Deus sabe o que, que transformou a verdade grega em libido e desejo pela espuma do pensamento...
4. Aí, meu amigos, a conta não fecha. Esse mundo das idéias, sabemos, constitui abstração noológica - explico: um mundo de pensamento, não-físico, real, em sentido metafísico, existente na estrutura organizacional das coisas, na sua essência e programa, mas não fisicamente. Logo, os deuses e o mundo dos deuses trazem ao homem a dimensão do quimérico, do fantasioso, da imaginação, do que é propriamente da ordem das visagens - características essas que são aquela marca fundamental do Homo sapiens, isto é, não são reprováveis em si mesmas, pelo contrário, o que seria da vida humana sem os delírios da imaginação e do sonho?
5. Todavia, o homem é, sobretudo, o corpo que ele é - ao contrário do que aprendemos de Platão, vamos aprendendo que é o corpo também quem pensa! Ah, o pensamento, propriedade emergencial da matéria!... Com isso não se contava, nem em Roma nem em Wittenberg... A espiritualidade, meus amigos, tendeu, por força desse patrimônio platônico, a escapulir pela janela da matéria e a refugiar-se no limiar da transcendência. Deus e o mundo de Deus atraem as pessoas para a sua mais absoluta descorporização - a fé se torna incorpórea, a esperança, descarnada, a caridade, converte-se em sentimento... vazio. Mesmo os bons teólogos, sem ironia, ainda se agarram a uma espiritualidade psicológica, a um fundamento imarcescível de glória, a uma essência fantasmática de contemplação para fora da vida, e a isso chamam vida! Ah, o terror do reducionismo biológico, eles dizem, assustados... temerosos de descobrirem que somos o que somos...
6. Quanto a mim, espero o dia em que faremos as pazes conosco mesmos, reinventando a espiritualidade como viagem para dentro de nós - e dentro de nós lá mesmo, não um dentro de nós espectral e ectoplasmático, a dança imaterial das caveiras de plasma. Não! Dentro de nós, isto é, em nosso sangue e carne, em nosso cérebro. Espero a brisa do dia em que a compreensão de como funcionamos seja a nossa adoração, o dia em que aprendamos que todos os nosso deuses são mitocondriais e sinápticos, hauremos disso todas as conseqüências e, em lugar de luto e lágrima, experimentemos o banquete da libertação desse mesmo sofrido corpo.
7. Mas esse dia está longe. Qão longe? Ah, muito. Eu diria que, todavia, acumula-se um cabedal de informações científico-cognitivas a nosso respeito, e de tal modo se avoluma que, mais cedo ou mais tarde, como caíram as muralhas de Jericó, cheguem a ruir os casebres platônicos da espiritualidade. E ficaremos um bom tempo a nos estreolharmos, surpreendidos de como fôramos tão simplórios em nossa ilusão desmedida... Nesse dia, senhores, haverá honra maior para o Espírito do que habitar o templo que, cuidamos, ele habita?
https://www.facebook.com/osvaldo.l.ribeiro/posts/808776322536273
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Ainda não compreendo... Terei de ler várias vezes, e vários textos.
De fato, há uma relação entre o Cristianismo (no mínimo, o de hoje) e o platonismo.
O corpo foi demonizado e a alma sacralizada, em busca do Ser Superior, em forma de transcendência, mas, como encarar um Cristo ressurreto e a postura racionalista, aristotélica? (se é que posso colocar Aristóteles e a filosofia pós-contemporânea no mesmo patamar).
Cristianismo sem Cristo, Filho de Deus e caminho para o restabelecimento da comunhão com Deus
(o que me parece sugerir o diálogo inter-religioso) existe?
No cristianismo a Liberdade está na Verdade Divina, encontra-se, em Deus (dentro da hermenêutica que faço do evangelho joanino), mas, o conceito de liberdade que tenho hoje, na prática, não encontra-se no Cristianismo, bem longe dele, por sinal! Influenciada ou não, a Liberdade parece estar na conquista da autonomia e independência, e parece que as pessoas que ignoram o mundo espiritual alcançam sem sofrimentos este nível de desprendimento da opinião dos outros e aceitação de si mesmo, pois não havendo pecados, o que mudar, vive-se do jeito que é, fazendo o que quiser, sem culpa.
Ai
Escrevo sem alvo, sem nexo...
Acho que é mais um desabafo que um comentário :/
Bom, felizes ou não, paradoxais, contraditórios...
... A vida continua! rs
Enquanto não entendo estas contradições, sendo eu mesma um exemplo clássico, vou vivendo e levando a vida, com sambas e poesias, sonhos e fantasias, e tendo que entregar alguns trabalhos... Final de semestre ;/
Saudades
Bom que posso ser provocada a pensar pelo peroratio.
Obrigada, sempre agradecida.
Prisca
P.S: Sophie está in off, poucos a conhecerão, acho, rs. Se eu conseguir escondê-la!
Li, algures, alguma coisa a respeito de acender-se a lâmpada e a pôr debaixo do alqueire... Se Sophie for luz, não haverá alqueire em que caiba...
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