1. Sábado, 20/11. Estou particularmente liberal nesta tarde. Paguei com extremo gosto os R$ 120,0 desse volume de Losurdo, o biografia intelectual de Nietzsche - meu filósofo predileto (para, ao fim, descobrir que sua posição política é inversamente proporcional à minha, para meu desgosto - o que, todavia, admito, não tira a genialidade filosófica desse aristocrata inescrupuloso). Mas volto à minha liberalidade. Vou brindá-los com uma transcrição magnífica, seção 7, capítulo 12, terceira parte. Um fenômeno! Deliciem-se com a informação comparativa - Marx versus Nietzsche, sob a pena de um historiador de primeira.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Marx, Nieztsche e a 'mais-valia'2. Tá bom pra vocês? Definitivamente, a recepção "metafórica" de Nietzsche no século XX é uma demonstração de como se pode fazer espuma, de como se pode viver de espuma, de verborragia e celulose - sem qualquer substância entre os dedos. Benditos sejam os historiadores - ah, mas alto lá: os historiadores a quem evidentemente cabe o título, porque há uma corrente metafórica narratológica na historiografia que, a meu ver, faz um tremendo papel de bobo, quando não nos faz a nós outros de bobos, entre suas goladas de cerveja e baforadas de cachimbo, ao entardecer. Metáfora, tá... Qui prodest? Tudo por uma boa platéia? Mas, em sendo esse o caso, realmente "boa"?
(407) Como no mundo antigo, assim no moderno o otium dos melhores, ou seja, da classe dominante, fundamenta-se, observa Nietzsche com a costumeira falta de escrúpulos - sobre a 'mais-valia' (...) fornecida pelos escravos ou pelos servos de todo tipo (...). Também esta categoria tem uma longa história. No século XII - observa Tocqueville - não tinha ainda surgido o Terceiro Estado e, portanto, a situação pode ser caracterizada assim: de um lado havia 'aqueles que cultivavam a terra sem possuí-la' e, do outro, 'aqueles que possuíam a terra sem cultivá-la'. Na realidade, é uma situação que continua a existir ainda alguns séculos depois, a julgar pelo menos por Taine: no Antigo regime vemos uma 'classe que, grudada à gleba, sofre a fome há sessenta gerações para alimentar as outras classes'. Como é confirmado em particular pelo quadro traçado por La Bruyère: homens ou talvez 'animais selvagens' com aspecto humano habitam em 'tocas' e 'vivem de pão preto, de água e de raízes' e desse modo 'poupam para os outros homens a pena de semear, de trabalhar e de colher para viverem'. Montesquieu, por sua vez, não tem dificuldade de identificar a fome do luxo (e, em última análise, da civilização) no 'trabalho alheio'. Imediatamente antes de Nietzsche, Schopenhauer indica com clareza no 'trabalho desmedido' de uma massa de operários, escravos ou semiescravos, o fundamento do otium de poucos e do desenvolvimento da civilização enquanto tal.
(408) Nietzsche é mais preciso. Ao falar de 'mais-valia' se exprime com a mesma linguagem de Marx, segundo o qual a extorsão de 'mais-trabalho' (...) ou 'mais-valor' (...) já não é o fundamento natural e insuperável da civilização enquanto tal, mas de uma sociedade fundada na exploração de classe. Poder-se-ia dizer que o debate sobre o trabalho chega às suas conseqüências extremas na Alemanha e, mais exatamente, nas duas plataformas teóricas e políticas contrapostas de Nietzsche e de Marx. Os dois concordam em aproximar a sociedade antiga e a sociedade capitalista: ambas fundamentam-se no 'mais-trabalho', que os beneficiários do otium impõem aos seus servos. Permanecendo clara a antítese no que respeita ao juízo de valor, Nietzsche não teria dificuldade em subscrever esta análise de Marx: 'Os povos modernos não souberam fazer outra coisa senão mascarar a escravidão no seu próprio país e impuseram-na sem máscara no novo mundo'.
Os dois se ignoram mutuamente. Mas o primeiro critica as teses do segundo, lendo-as, ainda que de forma parcial, esquemática e muitas vezes distorcidas, em Dühring. Este, ao exprimir a própria simpatia pelos 'elementos oprimidos da sociedade' e o próprio compromisso na luta contra as 'injustiças sociais', junto com os 'sistemas econômicos baseados no pedestal da escravidão, seja a antiga ou a americano-moderna ou colonial', condena o 'trabalho assalariado semilivre' do mundo moderno que, na realidade, é uma espécie de escravidão, condena a 'escravidão em sentido estrito e em sentido amplo' (...). Novamente são atacadospela análise crítica os Estados Unidados da Guerra de Secessão e a Europa da revolução industrial, a metrópole capitalista e as colônias, mundo moderno e mundo antigo, tudo junto. Mas com a sua pretensão de querer emancipar o trabalho enquanto tal, Dühring - objeta Nietzsche - se revela um 'anarquista' (...), pelo fato de pôr em discussão os fundamentos mesmos de todo ordenamento social e da civilização enquanto tal.
Por sua vez, embora ignorando Nietzsche, Marx conhece bem um autor francês do século XVIII que parece ter algum ponto de contato com o filósofo alemão. Trata-se de Linguet, que considera a escravidão como uma condição eterna da civilização, de modo que o recurso a nomes mais 'suaves' não muda nada da substância da coisa. Sim, 'a essência da sociedade [...] consiste em exonerar o rico do trabalho; desse modo lhe são fornecidos novos órgãos, mem-(409)-bros incansáveis que tomam sobre si todas as operações cansativas de cujo fruto o rico se apropria'. Marx julga o autor francês ao meso tempo 'reacionário', por causa da sua saudade da instituição da escravidão, e brilhante, pelo fato de desmascarar eficazmente a ideologia dominante, revelando a persistente realidade da escravidão e da mais-valia. Se tivesse podido, Marx teria inserido também Nietzsche, junto com Linguet, nas suas Teorias da mais-valia, entre aqueles autores modernos que não exitam em pronunciar sem fingimento o segredo da acumulação capitalista (o tabu inviolável da apologética vulgar), sem sequer esconder o que há de escravista no moderno trabalho assalariado' (Domenico Losurdo, Nietzshe, o rebelde aristocrata, Revan, p. 407-409).
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Esse livro do Domenico Losurdo sobre Nietzsche aristocrata tá na minha lista de leitura para Janeiro. Vou pegá-lo emprestado na biblioteca do Instituto Goethe....li o começo e curti...
É um tijolasso de quase 1.000 páginas...
O Losurdo escreve bem...
abraços
Joevan caitano (Joeblackvan)
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