domingo, 7 de novembro de 2010

(2010/561) Política e religião - qual o exemplo da Teologia?


1. Talvez eu seja radical nesse aspecto. Talvez eu tenha que aprender o equilíbrio aqui. Talvez para todas as coisas, sem exceções, tem de haver equilíbrio. Talvez não. Há certas questões - que são de "princípio" - onde não há meio-termo, e talvez a questão da Teologia no MEC seja uma delas - tem-se que ser "radical", de tratar a questão "na raiz", não na superfície, nas aparências. Justifico-me, todavia, pela absoluta ausência de discussão pública no que diz respeito à Teologia na Universidade. A Teologia entrou no MEC pela "porta dos fundos", eu quero dizer, não houve uma discussão pública a respeito de, primeiro, sua entrada, segundo, o "preço" dessa entrada, terceiro, as conseqüências dessa entrada. Não sei quem estava mais iludido ou que lado pensava iludir mais o outro - mas querer que a Teologia, há dois mil e quinhentos anos pura racionalização mitológica, entrasse para a "academia", para a Universidade, e se comportasse nos termos da regra do jogo epistemológico das Ciências Humanas... Bem, ou todos os envolvidos nas negociações sabiam que isso não ia acontecer, mas não se viu nisso um problema relevante, ou sequer a questão passou pela cabeça dos responsáveis, eventualmente presos a outros interesses.

2. Quero abordar esse tema por um outro ângulo. Acabamos de sair de uma campanha eleitoral pesada, em que, nos termos de Luiz Carlos Bresser Pereira, o modo estadunidense de fazer política entrou em campo brasileiro, ao lado, e não há nenhum paradoxo nisso, pelo contrário, do ranço reacionário e golpista da velha guarda política nacional. Nas palavras do, nesse caso, insuspeitável Bresser Pereira: "os dois males que de fato rondaram as eleições de 31 de outubro foram os males do udenismo moralista e potencialmente golpista e o da americanização do debate político". Interessa-me, aqui, a "americanização do debate político", expressão que me parece inadequada, em substituição da qual eu proponho "estadunidenização do debate político" (a América não é os Estados Unidos - nem deles!).

3. O Brasil constitui uma República desde 1889. O Brasil é um Estado Democrático de Direito, laico, republicano. É livre a expressão religiosa - enquanto expressão religiosa. Quando, todavia, a religião volta a dançar a dança da morte teocrática medieval e pré-medieval, capitaneada por paródias ao mesmo tempo ridículas e perigosas de sacerdotes, mas, na verdade, candidatos - inclusive à Presidência da República (meu Deus, quanta desfaçatez!), a prática cotidiana da manipulação da fé crente nos redis cristãos transporta-se para a população (tabém via Youtube!), confundindo a cidadania, laica e republicana, com a expressão de fé, mítica, privada. Levando-se em conta a plataforma "imperialista", "cruzadina", "catequista" da fé e da prática cristã milenar, a manipulação da fé religiosa para fins políticos constitui um crime de lesa-pátria, qanto mais perpetrado com ciência e requinte de pantominas, maquiavelicamente, programaticamente, descaradamente, desabusadamente. É lamentável, reprovável e crimisosa a manipulação da fé religiosa para fins políticos - a rigor, para nenhum fim. A religião não pode considerar-se critério para as decisões políticas, conquanto valores religiosos possam, como evitar?, entrar na aritmética das decisões particulares de voto. O cabresto, a manipulação, a massificação, a bovinização, a catequização da massa laica e republicana - pecado de morte. Imagine-se um santarão no Planalto!

4. E, no entanto, no centro da academia, ali, justamente onde o país poduz seu conhecimento de ponta, sua ciência, sua tecnologia, seu desenvolvimento, assenta-se a Teologia. Sim, trata-se da Universidade. Bem, se me perguntam o que acho disso, isto é, de a Teologia estar na Universidade, imediatamente deixo-me tomar de entusiasmo, porque, afinal, minha formação é inteiramente teológica - graduação, mestrado e doutorado, de modo que a "cidadania universitária" para a minha especialidade é uma dádiva, uma "conquista", uma vitória. Todavia, a Teologia que lá está, que dá aulas, não é a que eu gostaria que estivesse - nem eu nem Hans Küng, a julgar por suas declarações contundentes em Teologia a Caminho, dando sua posição quanto ao fato de que a única Teologia que deveria estar na Universidade seria a "histórico-crítica" (que eu transformo em "Teologia fenomenológica", para dar entrada a outras expressões de tradição teológica não-cristã, a quem a expressão histórico-crítica, porque relacionada à análise de textos, não cabe).

5. A Teologia que está na Universidade é, tirando-se a sofisticação, o equipamento retórico, a sub-estrutura de sustentação pública, rigorosamente, literalmente, indiscutivelmente - a mesma da Igreja. E na mesma medida! Não me deixam mentir os artigos entusiasmados de defesa dessa Teologia na Universidade - "confissão", "perspectiva de Deus", essas coisas. A única exceção que li é representada pela posição de (meu colega) Julio Zabatiero, que defende que a Teologia seja "saber racional público" (disso discordo), e que não devia estar na Universidade (do que também discordo - mas entendo: se Teologia é para ser o que é [há dois mil e quinhentos anos, pelo menos], não tem nada a dizer nem fazer na Unviersidade mesmo, salvo, claro, "converter" consciências - todavia, Teologia para mim não é [mais] isso). Todos os demais artigos que li defendem a Teologia confessional, a fé, a verdade, o dogma, a tradição, chamem pelo nome que quiserem, na cátedra...

6. Ora, não se trata, a rigor, de um mal exemplo? Nessas cátedras, sob que aspecto se tratam as questões republicanas? A questão do aborto, por exemplo. É a "fé" - isto é, a "doutrina" eclesiástica - a dar as orientações inexoráveis? É Deus a dizer de como gosta das coisas - República ou não? É a Igreja, distribuindo bulas, catecismos, encíclicas, disfarçadas em tratados de Sistemática e pseudo-exegeses sistemáticas? Já não estamos, aí, meus amigos, metidos até o pescoço num vespeiro? Falo pela experiência de meu doutorado - as disciplinas "bíblicas" suportariam qualquer ambiente republicano: até um ateu as estudaria, sem constrangimento algum - ali se faz "ciência universitária" (juízo meu - e também depende muito do que se há de chamar por "disciplinas bíblicas", uma vez que há um sem número de manipulações "hermenêuticas" em voga, que uma aproximação "gadameriana" justificaria, vá lá, mas que, cá entre nós, constitui ação política programática e intentio lectoris racionalizada). Já as disciplinas "teológicas", propriamente, as da "Sistemática", ah, meu caro, doutorado ou não - é dogma, doutrina, fé e confissão: não quer, cai fora. O máximo que voce pode fazer é criar um sistema em que pode continuar usando as mesmas palavras, dizendo as mesmas coisas, quando, na verdade, está dizendo outra(s), sabe-se lá exatamente o que - a isso eu chamo de "Teologia metafórica". Para mim, não dá.

7. O que eu quero dizer é que o mal exemplo da Teologia impede-nos a nós, teólogos, de pôr o dedo na ferida do uso escandoloso da fé na política. Falta-nos moral. Falta-nos responsabilidade. Falta-nos exemplo. Falta-nos vontade. A Teologia, se na Universidade, deve tornar-se republicana e laica, deve gostar disso, deve desejar isso, sentir-se, aí, em casa, na sua pátria. Gastarei todos os dias do resto dos meus dias para pensar uma Teologia assim, e morrerei pensando nela - parodiando elogiosamente Karl-Otto Apel, meu desejo é escrever uma Transformação da Teologia. Por quê? Porque sou republicano e laico, sou brasileiro, e, todavia, teólogo. Eu sou teólogo! Amo prostaticamente esse "ser teólogo". É visceral a relação entre a Teologia e eu. E não posso admitir que meu corpo viva em duas esferas, que brinque de Deus, aqui e ai, e finja ser republicano, ali e acolá - hipocrisia, falsidade, dissimulação. Exijo de mim, minha própria consciência me arranca da carne esse compromisso: ser inteiramente republicano e teólogo, algo muito parecido com o que Edgar Morin disse de si mesmo, de ser racional e místico. Aberto ao Mistério, que seja, porque disso não depende uma decisão "racional", conquanto dependa de uma decisão racional a admissão de que todas as doutrina são/sejam criações humanas. Mas o Mistério...? Não, o Mistério permanece - mas como Mistério, sem nome, inefável, intagível, ao mesmo tempo em que nos dissecamos inteiramente, para saber que essa sede, essa percepção, esse desejo, vem é de dentro de nós, um Mistério que é como que saído de nós e estampado nas estrelas. Como disse-o Mircea Eliade: o "sagrado" é uma estrutura da consciência humana... Belíssimo outono para a fé... e primavera para o Mistério... Tal qual praticada até aqui, teologicamente adestrada, a fé é o ocaso do Mistério.

8. Uma verdadeira vergonha o que se fez - o que o PSDB fez e deixou fazer - com a religião, a fé e a Teologia nesses dias de batalha campal, onde valeu tudo, da mentira à falsidade. Todavia, se retirarmos desses dias todas as coisas extravagantes, tudo de bizarro, todas as excrecências próprias da fermentação do mau caráter, do jogo sujo e sórdido, se desconsiderarmos a putrefação da política, teremos, então, um quadro bem simples: a promiscuidade entre Teologia e cidadania republicana. Aí, meus amigos, nessa dimensão, sob essa perspectiva, nada de muito diferente do que ocorre nas salas de aula de Teologia do MEC - radicalmente falando. Passado o dissabor desses dias, felizmente idos e perdidos, convém voltarmos os olhos, de novo, para essa republicaníssima questão: que Teologia deve estar no MEC?

9. E eis, então, uma excelente oportunidade para - finalmente! - uma discussão pública sobre Teologia na Universidade. O Conselho Nacional de Educação convida a sociedade para AUDIÊNCIA PÚBLICA "com a finalidade de propor Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Teologia". Dia 22/11, conforme convite disponível aqui.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

GT PESSOA disse...

Acho a Teologia um estudo bastante valido como forma de interpretação dos costumes de um povo e assim como vc, discordo dos métodos aplicados em universidade para o estudo "teologico" que aborda primordialmente o ponto de vista cristão/católico. A meu ver, deveriamos ter pelo menos um representante católico, um budista, um muçulmano e até mesmo um historiador perito em religiões menos conhecidas e mitologia para que compreendessemos a Divindade e sua influencia e importancia na formação das sociedades através dos séculos através do que eu chamo de "raizes da religião" afinal a matéria tem o nome de Teologia - estudo da divindade e não um catecismo de nivel superior

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