domingo, 10 de outubro de 2010

(2010/497) Toynbee fala sobre a República de Platão


1. Devo não a Toynbee, mas a Marcel Detienne, a leitura que hoje tenho da República de Platão. Até ler Detienne, e, depois, a própria República, servia-me, às vezes implícita, às vezes explicitamente, de Marx - assim, um tato quanto superficialmente, é verdade - para "ler" os séculos VI e V da Judá pré-cristã, berço do que de fundamental nos restou, enquanto cristãos - e ocidentais! - daquela invenção civilizatória. Eu via - e vejo - ali a maus explícita manipulação política em nível legislativo, mítico e litúrgico. Nascia assim minha repulsa àquele mundo político-religioso, a cujo estudo me dediquei.

2. Aí, deparei-me com Detienne. Não foi por meio de ninguém. Foi numa banca de livros da UERJ. Lá estava A Invenão da Mitologia - folheei, comprei, e quase deixei de ir ao congresso para o que ali estava eu. Com efeito, naquele dia, ouvi comentários sobre o Sl 8 que me fizeram arrepender-me grandemente de ter optado pelo congresso, em lugar de ter ficado no banco do saguão, lendo Detienne. Mas o li durante aquela noite... Ali estava a síntese do que eu via, concretamente - antes de o ler! - em Judá.

3. Folheio, agora, A Sociedade do Futuro, de Arnold Toynbee, e encontro um comentário à obra de Platão. Transcrevo-o:

"(...) os gregos poderiam ser chamados de saudosistas, conservadores e reacionários, sendo o filósofo ateniense Platão um exemplo disso. O mais famoso de seus diálogos é a República, no qual apresenta uma sociedade imaginária. Quando já era mais velho escreveu o diálogo As Leis, onde apresentava uma sociedade mais real do que a da República, mas também mais reacionária em termos políticos e sociais. Essa sociedade assemelhava-se a uma fascista ou medieval cristã, onde aqueles que se recusassem a admitir e repudiar seus erros heréticos eram mortos. É estranho encontrar esse tipo de colocação na Grécia antiga anterior à era cristã" (p. 91).

4. Exatamente - a República e As Leis são uma prefiguraão da sociedade cristã medieval, todas elas erigidas sobre o tríplice pilar "direito", "mito" e "liturgia". Todavia, ao contrário do que acontece com Toynbee, não me admira, não, que uma concepção desse tipo tenha florescido na Grécia platônica. Ora, ela florescera anteriormente, na Judá sacerdotal do final do século VI e primeira metade do século V, quando Judá era uma província persa e era governada político-ideologicamente por ela.

5. Como o grosso da leitura dos textos desse período dá-se no ambiente catequético, passa-se programaticamente longe da revelação a meu ver ineludível do volume de manipulação das lideranças judaicas daquele período. Ainda não tenho o quadro inteiro formado, ainda preciso juntar algumas peças e preencher algumas lacunas, mas eu diria que os movimentos, da Pérsia até as sociedades cristãs medievais, foi o seguinte:

a) primeiro, a Pérsia inventa o controle político-religioso dos povos conquistados, aplicando a eles a mesma política de controle religioso que se fazia internamente. Os reis controlavam seus próprios súditos, controlando as religiões, mas, em matéria de conquista de outras terras, antes da Pérsia, os reis destruíam os povos conquistados, humilhavam seus deuses, dispersavam suas tradições. A partir da Pérsia, de Ciro II, propriamente (com o que estamos diretamente ligados à Judá, porque a Pérsia "libertou" os judeus do cativeiro - didaticamente falando - em 539, os povos conquistados passaram a ser controlados por meio da manipulação persa da religião desses povos - veja-se, por exemplo, o caso de Yahweh, deus judeu, tratar Ciro como seu messias...

b) adota-se com os povos subjugados aos persas uma política de legislação, mito e liturgia que tem como função fundamental o controle social por meio das estruturas religiosas da própria sociedade conquistada.

c) a Grécia vence a guerra contra os persas, e torna-se herdeira de suas tradições, políticas e terras - incluindo, aí, Judá.

d) hipótese minha, Platão sistematiza, quer na República, quer em As Leis, a prática político-ideológica persa.

e) inaugurada a era dos grandes impérios (Pérsia, Grécia, Roma), o uso sistemático da religião para controle social assume proporções continentais e civilizatórias. Muito antes da sistematização de Marx, a religião já podia ser instrumentalizada como ópio - e o foi até a absoluta exaustão da consciência crítica, que, contudo, nunca cessa.

f) o Cristianismo herdou a política e a ideologia de controle social, e o faz com extrema eficiência. Mas não é perfeita a fórmula, porque a subjetivação reformada recrudesceu o vírus da resistência, eclodindo nas revoluções autonomizantes dos séculos XVII, XVIII e XIX.

g) o XX soa-nos como um século alguma coisa entre morto e reacionário. Esperemos para ver como será o XXI.

6. De quando em vez, pessoas, e não só reinos, assumem a postura de ditadores político-religiosos. É o momento da encarnação da patologia do divino. O divino embebeda, enlouquece, e as consciências se traem, se aviltam, se violentam. Há gosto de sangue na boca. Dois mil e quinhentos anos de história... é compreensível. Platão e Ciro habitam profundamente a alma cristã...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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