segunda-feira, 4 de outubro de 2010

(2010/482) Cinzas


1. Quando houver sido contada a última conta do colar da minha vida, como terço de freira, como contas árabes, como carneiros de insônia, então o Anjo de Fogo olhará para mim, deitado e inerte, e fará os três sinais esquecidos. O Tempo fechará os olhos sobre mim. A Água retirar-se-á. A Terra abrirá seus braços. O Ar bafejará a sua bênção. E o Mar rezará as setenta orações do Dia e da Noite. Ele, então, meu Anjo de Fogo, queimará a carne de que fui dono e escravo, escravo e dono, e a tornará nas cinzas de Eclesiastes. O sopro de Yahweh cairá sobre mim, e me espalhará pelo Céu, pedaços de mim a bailar como pirilampo negro. E nada mais haverá, como suspeitávamos, mas, de medo, não ousávamos falar, porque apostamos na vida futura tantas fichas que a presente perdera o significado que tinha...



2. Eu não temo, mais, ir embora. Entendo, a cada dia mais intensamente, que chega um momento em que é natural desejar partir. Amar profundamente a vida, compreendê-la profundamente, impõe que se ame a morte, que se entenda a morte, que se naturalize a morte. Porque ela não é inimiga - é a amiga mais íntima, a quem se pode recorrer a qualquer momento, e que, afinal, nos levará em seus braços. Não nos podemos dar a nós mesmos a Vida - mas a Morte, sim! E isso é significativo, meus amigos!

3. O sentido da vida está em olhar para ela, a Morte, como constitutiva. Não há que haver medo, mas serenidade. Não há que haver revolta, mas compreensão. Porque não há como fugir do fato de que, quando Deus disse Vida, o eco dos salões celestes reverberou incontinenti: Morte... Morte... Morte...

4. E viu Deus que era bom...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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