sábado, 17 de abril de 2010

(2010/316) Sobre saber jogar o jogo


1. Teoria Literária, sem Pragmática, é como os céus na cultura próximo-oriental - abóbadas de chumbo, mas sem base que os sustente. A Teoria Literária, eu diria, são as jogadas de um determinado tipo de jogo. O jogo em si, esse é a Pragmática. Se você não sabe que jogo está jogando, fazer as jogadas perde o sentido - e eu suspeito que a sensação de "falta de fundamento" que assola a cultura epistemológica do século XX seja o sintoma de um deslocamento da "situação", resultado de uma incompatibilidade entre jogo e jogada.

2. Pragmáticamente, há três jogos possíveis para o ser humano. Jogos! A política - o jogo político -, a estética - o jogo estético - e a heurística - o jogo heurístico. Cada um é um jogo com regras próprias, objetivos próprios, pressupostos próprios. Cada um desses jogos é um mundo diferente dos outros. Cada um deles tem as suas próprias "jogadas", como o movimento em ele do cavalo, no xadrez. O que determina esse movimento não é o fato de a peça ser um "cavalo", mas o fato de o jogo de xadrez determinar que o movimento da peça "cavalo" é em ele. Jogadas só fazem sentido dentro do jogo. Se você abstrai o jogo, e mantém a peça na mão, a peça, deslocada, descontextualizada, perde a sua "teleologia", porque não há uma essência teleológica para a peça em si - a intencionalidade de objetivo e de movimento da peça é função ecossistêmica do jogo em que ela é jogada. Fora do jogo, é tão somente uma "memória" de peça, um resíduo desterritorializado de jogo.

3. Isso funciona da mesma forma com textos. Eu estou para escrever um livro sobre Cantares. Já o devia ter escrito. Como minha dissertação de mestrado (Nehushtan, que me atraso em publicar) e minha tese de doutorado, será uma obra de caráter - até onde posso controlar - "inédito". Agora há pouco, ensaiava em como escreveria a introdução. E toda essa discussão sobre jogo e jogada, sobre Teolria Literária e Pragmática, me veio à mente.

4. Eu posso jogar o jogo heurístico com Cantares. Nesse caso, sou obrigado a tentar dizer exatamente, rigorosamente, o que é que o livro significava, quando foi produzido. Dizer o que Cantares significava quando foi produzido é dizer - isso e mais nada - o que seu autor (sua autora!) teria querido dizer com a obra que acabava de compor. Se o jogo que jogo é heurístico, e venho com aquela história de polissemia, já troquei de jogo. No jogo heurístico, a polissemia de um texto é um estorvo, um obstáculo, um problema a ser vencido, como a conquista de uma ilha, cercada que está de água por todos os lados - se eu não atravesso a água não chego à ilha jamais...

5. Mas eu posso escrever uma obra política - uma defesa apologética das alegorias normativas que a Teologia produziu sobre Cantares. É político o jogo, porque, a priori, determino-me a manter a norma, a interpretação oficial, de uma determinada cultura religiosa, de um determinado grupo religioso, de alguma determinada autoridade religiosa. É jogo político, porque o critério crítico, a chave de leitura, é o que as pessoas dessa comunidade já previamente determinaram como sendo o certo, e eu escrevo para adequar o livro - Cantares - a esse grupo. Não é um jogo que me agrade jogar. As editoras evangélicas jogam esse jogo - porque ele é comercial...

6. Além desses dois jogos, posso jogar um terceiro - um jogo estético. Posso entregar-me, ludicamente, à polissemia do texto, e brincar de dizer coisas possíveis a partir das palavras escritas na narrativa, sem nenhum compromisso, seja com a "norma" religiosa, seja com a intenção histórica do autor ou da autora do livro. O critério crítico é meu próprio devaneio poético e lírico, minha criativadade, minha inventividade, minha imaginação. Nesse caso, utilizo-me dos termos do livro para projetar-me, criativamente, e produzir uma experiência de projeção estética. Literatura...

7. Quando e porque confundem-se esses três jogos, passa-se a dizer um monte de asneiras a respeito das jogadas que se realizam em torno do livro. Os "pós-modernos", ignorando a opção estética/política de seu jogo, desqualificam o trabalho heurístico, classificando-o por um sem número de termos interditantes. Um jogador político, a serviço desse ou daquele sistema religioso, encaminha diligente e piamente ao inferno aqueles dois jogadores, um, crítico demais para seu gosto, outro, porque se aproxima perigosamente demais da libertinagem retórica... Já o crítico, hipnotizado por sua rigidez metodológica, amaldiçoa a tudo e a todos que quebrem as regras de aproximação aos sítios arqueológicos... Tudo isso é flagrante insanidade epistemológica.

8. É preciso, antes de tudo, identificar o jogo que se joga. É dentro de cada jogo, e só aí, que se podem fazer as observações críticas pertinentes. Um jogador heurístico, como eu, só pode analisar o resultado de outros ensaios heurísticos. Não me interessa um comentário confessional de Cantares - para meu jogo, ele não serve para nada. Serve para a catequese, que é a sala de entrada dos jogos políticos eclesiásticos - inculcação da norma doutrinária. Mas, para a pesquisa, são entraves.

9. Eu quero escrever um livro sobre Cantares que seja um representante do jogo hurístico - quero haurir dele a sua intencionalidade histórica. Mas quero fazer isso de modo a comunicar o resultado de forma dupla: numa parte do texto, o comentário em si, a exposição técnica da interpretação arqueológica da história que o livro narra, e, de outro lado, a comunicação estética desse resultado heurístico, isto é, a narrativa desenvolvida, na mesma dimensão e no mesmo diapasão da intenção histórica de Cantares, da minha compreensão da história. Uma parte do texto será informativa e a outra será inspirativa. Uma, técnica, a outra, lúdica. Uma, para entender, outra, para experimentar. Mas, o jogo em si, será um só - o jogo heurístico, o jogo do conhecimento, a pragmática da pesquisa.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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