domingo, 11 de abril de 2010

(2010/310) Um parágrafo de tirar o fôlego - de Nietzsche


1. "A hostilidade dos alemães contra a Época das Luzes. Que se faça um levantamento das contribuições que os alemães trouxeram com o seu trabalho intelectual para a cultura universal na primeira metade deste século e que se considere em primeiro lugar os filósofos alemães: eles retornaram ao primeiro e mais antigo grau de especulação, pois procuravam a sua satisfação nos onceitos e não nas explicações, tal como os pensadores das épocas senhadoras - eles ressucitaram uma forma pré-científica da filosofia. Em segundo lugar, os historiadores e os românticos alemães: todo o seu esforço tendia a atribuir um lugar de honra aos sentimentos primitivos mais antigos, particularmnte ao cristianismo, à alma popular, às lendas populares, à linguagem popular, ao espírito medieval, à ascese oriental, ao hinduísmo. Em terceiro lugar, os estudiosos da natureza: eles lutaram contra o espírito de Newton e de Voltaite, e tentaram, como Goethe e Schopenhauer, restabelecer a idéia de uma natureza divinizada ou satanizada, com tudo o que isto significa comumente do ponto de vista ético e simbólico. A tendência maior dos alemães se opunha inteiramente ao Iluminismo e à revolução da sociedade que, por um erro grosseiro, passava como sendo a conseqüência daquele. A piedade por tudo o que ainda existia tentava se transformar em piedade por tudo o que tinha existido, simplesmente para que o coração e o espírito recobrassem mais uma vez a sua plenitude, e não mais abrissem qualquer espaço para os fins futuros e inovadores. O culto do sentimento foi erigido no lugar no culto da razão, e os músicos alemães, enquanto artistas do invisível, do onírico, do lendário, do nostálgico, realizaram a construção do novo templo com mais sucesso do que todos os artistas da palavra e do pensamento. Mesmo levando em consideração o fato de que muitas boas coisas fossem ditas, e descobertas no detalhe, e que mais de uma tenha sido julgada desde então com mais eqüidade do que nunca, não permanece menos verdadeiro, quando se considera o todo, que o risco geral não era negligenciável, sob a aparêcia de um conhecimento tal e definitivo do passado, de sujeitar o conhecimento em geral à dominação do sentimento, e - para falar como Kant, que definia assim a sua própria tarefa - "reabrir o caminho para a fé, mostrando para o conhecimento os seus limites". Respiremos novamente um ar livre: o tempo desse perigo passou! E coisa estranha: os espíritos que os alemães evocaram com tanta eloqüência se tornaram exatamente com o tempo os adversários mais perigosos dos desígnios daqueles que o evocaram - a história, a compreensão da origem e da evlução, a simpatia para com o passado, a paixão novamente desperta do sentimento e do conhecimento, depois de parecerem todas por algum tempo, emprestaram seu concurso compassivo ao espírito obscurantista, visionário e retrógrado, envolveram um dia uma natureza diferente, elas voam hoje com asas bem maiores, deixando longe, atrás e acima de si, os seus antigos evocadores, para se tornarem os gênios novos e mais fortes destas "luzes" contra as quais, justamente, se tinha feito a evocação. Estas luzes, devemos hoje fazê-las progredir - sem nos preocupar com o fato de ter havido uma "grande revolução", depois de uma "grande reação" contra esta, nem com o fato de que uma e outra ainda perdurem: elas são apenas um movimento de ondas em comparação com o fluxo verdadeiramente grande no qual "somos levados", e queremos sê-lo" (NIETZSCHE, Friedrich, Escritos sobre a História, Rio: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 209-211).

2. É muito "reconfortante", digamos assim: para a "vaidade intelectual", encontrar num só parágrafo toda uma longa série de postulados históricos com os quais tenho trabalhado há já consideravel tempo, particularmente depois de meu "encontro" com José Carlos Reis, na disciplina de Teoria da História. Esse período - séculos XVIII e XIX (conquanto suas verdadeiras raízes avançam tão fundo quanto a cultura greco-romana, o século das invasões árabes na Península Ibérica e o século XVI alemão, de que tudo o mais é desdobramento "criativo") - define a modernidade ocidental. É aí que tudo que conhecemos hoje como Ocidente está em gestão acelerada, em revolução, em reação - é isso tudo uma grande metáfora de batalhas civilizatórias, de mundos colimados, de políticas, de culturas... A Modernidade é uma invenção ocidental, situada entre uma estrutura pré-moderna planetária e uma reação pós-moderna ocidental. A Modernidade é a Geni da história ocidental contemporânea...

3. O "encontro" entre uma França iluminada e napoleônica, de um lado, com uma Alemanha mística e medieval, de outro, produziu o fenômeno mais extraordinário da cultura Ocidental, se considerarmos os últimos 200 anos: foi justamente aí que conceberam-se as Ciências Humanas, essas, sim, verdadeiras iconoclastas, incontroláveis: a Teologia pôde cooptar para si a "razão" - mas as Humanidades... a essas, só os falsos teólogos e humanistas, híbridos de fraude e desmedida.

4. Se o leitor quiser deliciar-se com uma história ambientada nesse período crítico, no olho do furacão da guerra napoleônica de invasão à Alemanha que, em reação, vai parir o Romantismo, divirta-se com Os Irmãos Grimm. É necessário inglês. As demais partes estão disponívesi no Youtube, e reproduzo aqui, apenas, a primeira.

5. Esse filme encena de modo magnífico, conquanto não seja nem de longe esse o seu objetivo, o enfrentamento histórico das luzes francesas contra a mística alemã. É também sobre isso que fala Nietzsche. Mas ele o diz de modo (para mim) curiosamente novo: a idéia que tenho carregado comigo é a de que o Romantismo foi uma reação programática de anulação dos efeitos políticos da razão napoleônica, que, da mesma forma como "Deus" era usado pelo imperialismo cristão, utilizava-se da "deusa" razão para justificar seu alegado direito, assim vicário, de libertar os povos... Para anular o direito retórico francês, os alemães, que não o podiam vencer nas armas, retiraram de seus depósitos a tese do desvario da razão, a tese do assombro humano como fundamento do "mundo" hermenêutico humano, o estado de solidão e perdição humanos em face do mundo e do Universo, a história, enfim, como cenário único da espécie humana.

6. Já Niezsche considera que tudo isso se resumiu a uma defesa da mística... Talvez tenha sido assim, de fato. Mas o que me interessa é que o próprio Nietzsche reconhece que, no final dessa "reação" romântica contra as luzes, o estado da "mística" (a rigor, da Teologia) resulta pior do que antes, porque, ao passo que a Teologia podia suster-se diante do Iluminismo - a rigor, não houve reação alguma de monta contra o Iluminismo -, o Romantismo, por sua vez, retira toda a base de argumentação metafísica, o homem, aí, torna-se pura contingência inexorável, de modo que, pressentindo, aí, sim, o perigo, as igrejas - todas - reagiram de modo violento: Vaticano I, Karl Barth e The Fundamentals. Sim, os gênios voam, agora, com asas mais fortes, maiores, do que antes.

7. Ainda que a intenção - primeira?, segunda? - de Kant tenha sido "abrir [manter] caminho para a fé", delineando os limites do conhecimento, no final das contas, o que a Crítica da Razão Pura consegue é anular as argumentaões racionais a respeito da metafísica, das doutrinas, da fé - tudo isso cai por terra de uma só vez. A Crítica da Razão Prática sustenta-se, abrindo caminho para a fé, somente onde a Crítica da Razão Pura não é levada a sério. De modo que não importa tanto para quem Kant prestava serviços - seus serviços, a médio prazo, tornaram a Alemanha cada vez menos "atual".

8. Não é revelador que a Teologia se faça, ai, como se fora ciência, quando não passa de mito e metafísica? Não há racionalidade na Teologia - ela, lamentavelmente, cnostitui-se um bolsão reacionário de racionalização: para o constatar, leiam-se quaisquer das obras magnas dos sistemáticos da moda. O que da Teologia tornou-se verdadeiramente ciência, a exegese, ainda sequer tornou-se fundamento das "ciências teológicas", todas, sem exceção, agarradas à Nicéia (cada uma a seu modo, naturalmente). O Ocidente vive dividido em dois mundos, ainda - o político-teológico, medieval e obscurantista, e o científico-humanista, perdido, ainda, por falta de verdadeira adesão civilizatória: as "máquinas" são científico-humanistas, mas seus operadores, medievais.

9. Perfeito o parágrafo de Nietzsche. Eu o poderia ter usado em Teologia no Divã, se o conhecesse à época... Mas não é tarde...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio