sexta-feira, 2 de abril de 2010

(2010/283) Sobre Transdisciplinaridade


1. Quando a Teologia foi deposta pela força das armas... quando? Em 1789, por assim dizer, quando os europeus, ainda que não a tenham inventado, implantaram civilizatoriamente a República. OK? Então, continuemos: quando a Teologia foi deposta pela força das armas, da noite para o dia as respostas perderam o sentido. A Teologia era a despenseira das respostas prontas - como ainda o deseja ser. Mas a sociedade pós-teológica, isto é, a republicana, acabava de descobrir/decidir que as respostas teológicas seriam reservadas para as comunidades religiosas, mas não mais para a sociedade enquanto sociedade.

2. Ao mesmo tempo, as velhas perguntas já não atendiam mais às novas circunstância. Além de respostas novas para as velhas perguntas, era necessário que novas perguntas também fossem feitas. E, já que não havia mais um "Deus" para dar respostas prontas, e já que eram os homens a dar a si mesmos as suas respostas, iniciou-se sistematicamente um longo processo de disciplinarização do saber. O saber foi dividido estrategicamente em territórios. Conquistá-lo não seria mais uma tarefa de um só homem, mas de muitos, cada qual apropriando-se de um território específico. A isso, se chama a disciplinarização do conhecimento. A isso se chama disciplinaridade.

3. Foi muito bom. Nunca se conheceu tanto sobre coisa alguma do que nesse período. Contudo, dividir o território do saber em capitanias hereditárias, apesar de ajudar no melhor conhecimento de cada capitania, acaba cortando as comunicações inter-capitanias. Os suseranos de cada feudo desgostaram das pontes que cobriam os rios limítrofes, e, mais cedo ou mais tarde, acabaram por derrubá-las. Foi quase como se cada disciplina da nova configuração disciplinar do saber se tornasse uma velha China imperial, fechando-se em si mesma, admirada da barbárie que reinava fora dela própria.

4. Tentou-se uma primeira solução - a multidisciplinaridade. Na prática, isso consiste em pôr na mesma sala as diversas disciplinas. Aqui e ali, até há progressos. Mas, a médio prazo, revelou-se que aproximar as disciplinas fazia com que se aguçasse o desejo de conquista de umas sobre as outras. Não havia diálogo de fato, interação, havia ressentimento e vontade de poder. E a multidisciplinaridade, conquanto tenha avançado, não resolveu o problema da disciplinaridade.

5. Tentou-se, pois, a segunda solução - a interdisciplinaridade. É um avanço em relação à multidisciplinaridade, porque, além de serem postas num mesmo ambiente, as disciplinas são orientadas a trocarem informações, a interagirem, a dialogarem. Algo de fato aconteceu. Houve avanços. Mas o fenômeno revelava que uma disciplina interagia com a outra, recolhia informações, importantes informações, e, então, recolhia-se de novo à sua modalidade de reflexão, tratando aquelas informações a partir de sua própria perspectiva. Se na multidisciplinaridade, as disciplinas tendiam a conquistarem umas os espaços das outras, na multidisciplinaridade, as disciplinas terminavam por conquistar as conquistas das outras, transmutando-as não apenas em conquistas suas, mas trabalhando-as a partir de sua própria perspectiva.

6. Hoje, tenta-se uma terceira solução - a transdisciplinaridade. Não se trata nem de multidisciplinaridade, nem de interdisciplinaridade. O "trans" significa que uma passa por dentro da outra, uma atravessa a outra. A transdisciplinaridade postula que cada disciplina torne-se multitopográfica, colocando-se metodologicamente sobre o território da outra, enquanto faz seu próprio trabalho. A transdisciplinaridade é como um jogo de xadrez com múltiplos tabuleiros verticalmente sobrepostos, de modo que cada movimento de cada peça em um tabuleiro "acontece" em todos os tabuleiros. É o modo de operação em que uma disciplina pensa o seu objeto também a partir do pensamento das outras disciplinas.

7. Na multi e na interdisciplinaridade, o movimento é externo à consciência do pesquisador - é seu corpo que é posto numa sala repleta de outros pesquisadores. Pede-se a ele que trabalhe junto com os demais, que dialogue com os demais. Às vezes, ele consegue. Nem sempre. É a conversão interior da consciência do pesquisador que estabelece a transdisciplinaridade, porque ele sai de seu espaço, vai ao espaço do outro, para pensar o olhar do outro enquanto posto sobre seu próprio objeto de pesquisa, e retornando para seu próprio espaço com esse novo olhar, e não com o resultado dele, apenas. A transdisciplinaridade não é um simples desenvolvimento da disciplinaridade - é mais do que isso, é o refluxo da disciplinaridade sobre si mesma, sem a anulação de sua necessária compartimentalização do inalcançável espaço do saber, contornando a compartimentalização especializadora e reducionista pela sua fusão na consciência disciplinar do pesquisador.

8. Na prática, o historiador pensará como historiador, mas pensará como sociólogo, como biólogo, como físico, como arqueólogo, como cientista cognitivo, como psicólogo. A transdisciplinaridade é um vetor de formação da consciência - mais do que a organização dos espaços de trabalho. Sim, a organização dos espaços de trabalho contribui significativamente para a operacionalização práxica da transdisciplinaridade - mas, que a mera re-organização dos espaços de trabalho não garantem a superação do isolacionismo disciplinar, prova-o o fragoroso fracasso da multi e da interdisciplinaridade.

9. A palavra-chave, se há uma, é a compatibilidade. Todos os saberes, ou são compatíveis entre si, ou não são saberes. Não importa sobre que perspectiva você acessa o real - todas as perspectivas, se são perspectivas sobre o mesmo real, elas devem, então, ser compatíveis. Iguais, não - compatíveis. Uma verdade sociológica não é igual a uma verdade biológica, mas se as duas forem incompatíveis, uma das duas, ou ambas, estão erradas. 10. A transdisciplinaridade marca um novo dia para a pesquisa, para o conhecimento humano. O meu desejo, enquanto teólogo, é que a Teologia, imprestável para a transdisciplinaridade, converta-se às ciências humanas e, então, passe a ter as condições inegociáveis da plataforma de operação do século XXI.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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