sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

(2010/066) Do problema de uma obra em camadas


1. O corpo reacionário inteiro da "Exegese" de cabestro (aquela produzida em ambientes em que, com u'a mãom bradam-se respeito à Bíblia, enquanto com a outra tornam-na um fetiche mágico) encontrou, finalmente, uma parceria em plena era contemporânea - as abordagens pós-modernas (cujo nome me causa arrepios à nuca, como se zumbis horripilantes me encarassem à meia noite...). Juntas, entre que desconsideram o fato assentado de que obras inteiras das Escrituras Cristãs constituem-se de níveis redacionais mais ou menos numerosos e a máxima normativa de que se deve ler a Bíblia inteira como um livro só. Quando entrarem em coito procriativo, os filotes dessa concepção não hão de ser nada agradáveis à vista...

2. Nos dois casos, trata-se de uma evidência inequívoca do que Freud chamou de "princípio de prazer", necessário, em dose equilibrada, mas que, quando patológico, subjuga e recalca o "princípio de realidade". Nesse sentido, o "prazer" das hordas reacionárias é puramente político-teológico, manifestação da síndrome de teocracia dissimulada - sacerdotalismo escrachado ou constrangido (há casos de Síndrome de Estocolmo na Teologia!). Já o prazer dos vagalhões pós-modernos é a superação da exigência do discurso crítico, da necessidade de satisfação dos discursos, dos fundamentos. No final das contas, tragédia. Quem diria que se iriam enamorar nesse canto escuro do quarto histórico, conquanto se espinafrem em frente às câmeras...

3. Cá no meu canto - em minha "torre de marfim" -, vou mantendo distância de ambos ambientes, não sem, de quando em quando, mirar algum obus e dar alguns tiros. Terminada a marcação da posição política, retorno à prancheta. Podem espernear conservadores e ultra-relativistas: inúmeros (quase que a totalidade) "livros" da Bíblia são obras escritas no tempo, um pouco hoje, um pouco amanhã, um pouco daqui a duzentos anos. Não é uma voz que fala ali - são várias. Não há uma mensagem ali - há várias.

4. O Evangelho de João é uma dessas obras. R. E Brown já escreveu, em A Comunidade do Discípulo Amado, que pelo menos quatro fases redacionais - preste-se atenção: pelo menos quatro comunidades no tempo estiveram envolvidas com a redação de João - escreveram o quarto Evangelho. Ah, quando lemos "João" como se fosse um livro... Certo, quem o queira o faça, e cada um encontre aí o que queira: chama-se a isso alegoria, e é disso que se trata, afinal, quer na Norma medieval (disfarçada em Dogma), quer na malemolência pós-moderna, travestida em polissemia. Do ponto de vista histórico, contudo, não há um "João" - há vários (quatro?, cinco?).

5. Sugiro ao leitor ler, por exemplo, Jo 5,1-18 e, daí, saltar para Jo 9,1-41. Sugiro anotar as semelhanças e as diferenças. Eu aposto um braço, amigos, que João 9 segue-se a João 5,1-18. Não quero dizer que tudo que esteja entre João 5,1-18 e João 9 seja psoterior. Talvez haja alguma coisa aí dentro que pudesse fazer parte de um "recheio" eventualmente original - é coisa para se pensar mais tarde. No entanto, a distância que, agora, separa Jo 5,1-18 e Jo 9 trai a possibilidade concreta de compreensão da retórica que anima as duas passagens....

6. Mas, cá entre nós - se é assim, se é verdade que há camadas redacionais, que há distâncias cunhadas entre passagens que, agora, estão distantes, mas que, à época da redação, eram unidadas ou próximas, o que esperar de nossa leitura? Que esforços, amigos, não são demandados de nós, para além da Norma e das facilitações retórico-políticas da pós-modernidade...?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio