domingo, 17 de janeiro de 2010

(2010/047) Usar a força contra os textos


1. Há uma sessão de Os Demônios de Loudun, de Aldous Huxley, que gosto de usar para ajudar estudantes a aperfeiçoarem sua capacidade de leitura. Em minha versão, encontra-se entre as p. 72 e 78 (Aldous Huxley, Os Demônios de Loudun. São Paulo: Círculo do Livro, 1992). Trata-se de uma discussão acerca do "desejo humano de autotranscendência". Uma vez que o texto é extraordinariamente bem escrito, e dado que as argumentações são refinadas e quase aritméticas, resulta num exercício muito bom de leitura, porque você, além de ler, pode, digamos assim, fazer a "prova real" da leitura. Depois do exercício é que a gente vê o quanto lê... mal...

2. Na p. 75, lê-se: "A Verdade e o Dever fundamental podem ser formulados, de forma mais ou menos adequada, no vocabulátrio de todas as religiões mais importantes". Na seqüência, Huxley empregará o vocabulário da "Trindade" para "abrir" a Filosofia Perene, isto é, expressões das "verdades tradicionais" - esotéricas. A leitura faz pressupor que seja o Cristianismo, seja a Tradição Hermética, está-se diante do mesmo "universo" e "conteúdo".

3. Na verdade, o que Huxley faz é "alegoria". Ele emprega termos de uma plataforma, e os "abre", isto é, os "maneja" a partir de outra plataforma, guiando os olhos e a consciência do leitor a aceitar pacificamente a caminhada. Trata-se de um jogo muito interessante, cujo resultado pode ser a convergência de todas as fórmulas filosóficas, religiosas e científicas para uma única "interpretação". Na prática, você pode fazer isso com qualquer coisa - fazer qualquer coisa dizer o que você quer que ela diga. Se fosse a fala viva de uma pessoa presente, ela poderia retrucar e asseverar que não é nada disso que ela está dizendo. Mas, tratando-se de textos... como?

4. Veio-me à mente esse fenômeno, dessa vez!, por conta da leitura de um trecho de A Doutrina Secreta, de Helena Pretovna Blavatsky. Trata-se de uma "exegese" de Madame Blavatsky, aplicada a Gn 1,1-3ss. Ora, trata-se dos versos de minha Tese... É, pois, para mim, muito fácil observar o movimento alegórico da "exegese" proposta.

5. Eis o exercício de Madame Blavatsky, que, evidentemente, além de não ter como seguir, reputo exegeticamente equivocadissimo, conquanto exemplar para a ilustração do, digamos, "princípio de Huxley", que, a despeito de uma exegese histórico-crítica sempre disponível, assenta o fato de que qualquer coisa pode ser dita a partir de qualquer coisa:

Que se leiam os primeiros capítulos do Gênese e se reflita no que eles dizem. Ali 'Deus'' ordena a outro 'Deus', que lhe obedece a ordem. É o que se lê até mesmo na cuidadosa tradução dos protestantes ingleses, autorizada pelo rei Jaime I.

No 'princípio' (a língua hebraica não dispõe de palavra para exprimir a idéia de Eternidade), 'Deus' fez o Céu e a Terra; e a Terra 'estava vazia e sem forma, ao passo que o primeiro não era propriamente o Céu, mas o 'Abismo', o 'Caos', com as trevas sobre a sua face.

'E o Espíito de Deus se movia sobre a face das Águas', isto é, sobre o Grande Abismo do Espaço Infinito. E este Espírito é Nârâyana ou Vishnu.

'E Deus disse: Faça-se o firmamento...' e 'Deus', o segundo, obedeceu, e 'fez o firmamento'. 'E Deus disse: Faça-se a luz', 'houve a luz'. Mas esta última não significa absolutamente a luz fisica, mas, como na Cabala, o Adão Kadmon andrógino, ou Sephira (a Luz Espiritual) (...)" (H. P. Blavatsky, A Doutrina Secreta - síntese da ciência, da religião e da filosofia. V. II. Simbolismo arcaico universal. São Paulo: Pensamento, s/d).

6. A "doutrina secreta" encontra-se de posse de Madame Blavatsky. Ela, então, de posse da "doutrina", encaminha-se a Gn 1,1-3ss. Como quem toma um véu e, com ele, recobre uma superfície, ela pousa a doutrina sobre o texto. Agora, basta que vá transmutando cada palavra do texto no seu necessário, à luz da doutrina, para que tenha a sua interpretação - e de tal modo que aquele que não tiver nenhum treino de exegese, ou nada souber, de fato, da cultura judaíta, enxergará exatamente aquilo que Madame Blavatsky nos convida a enxergar...

7. Naturalmente que não se trata de um artifício esotério - necessariamente. A Teologia Sistemática, e mesmo as modernísimas teologias de recorte pós-moderno, fazem a mesma coisa, por exemplo, insistindo, ainda - masi sso é um crime! - em pôr a Trindade lá. Onde está a negligência?, onde está a ignorância?, onde está a má fé?

8. Seria curioso pôr um "bom" sistemático diante de Madame Blavatsky, ele, com sua doutrina na caixa, ela, com a dela, e pedir-lhes a ambos que nos "demonstrem" o fundamento do exercício. Imediatamente, desviarão nossos olhos do texto, e nos imporão atentar para... a doutrina que carregam! Pedirão que, primeiro, deixemo-nos hipnotizar pela lucidez e obviedade da "verdade" contida na doutrina e, então, só depois, que olhemos para o texto bíblico. O apaixonado por Blavatsky enxergará Blavatsky, o apaixonado pela Sistemática teológicoa cristã, enxergará a Trindade a borboletear sobre as águas...

9. Naturalmente que um crítico da exegese dirá o mesmo da exegese. Eu sugeriria a leitura de minha Tese, se, de fato, o tema é relevante, ou, no fundo, tudo não passará, nesse caso, de pirraça infatil. Como não vou dar atenção à manha de criança, apenas esclareço que, quando se trata de exegese - e, com exegese, quero me referir à interpretação crítico-histórica e crítico-social -, quer-se os olhos do leitor pousados, o tempo todo, sobre o processo, as passadas, os movimentos de mão, e, não, sobre uma "verdade" prévia. Não apenas a exegese é crítica, mas ela está aberta à crítica. Não é o caso do esoterismo ou da Sistemática...

10. Para encerrar, uma consideração. Não estou em condições de refutar o esoterismo. Não tenho meios de desconsiderar seja Ísis sem Véu, seja A Doutrina Secreta. Confesso, até, que, de vez em quando, leio as obras, e experimento sensações curiosas. Apenas quis dizer que, em se tratando de Gênesis 1,1-3, A Doutrina Secreta erra - e feio (salvo, naturalmente, se aplicava propositadamente o "princípio Huxley" - o que, contudo, não está esclarecido no texto).

11. A mesma smpatia eu não posso ter, contudo, com a Sistemática. A razão é simples: ela diz-se bíblica, isto é, ela diz que a sua fonte é a Bíblia. Mas não é verdade. Não há Sistemática que eu conheça que sobreviva a dez minutos de exegese. Nesse caso, Blavatsky tem a favor de si o fato de que apela para verdade milenares, reveladas a ela por "entidades espirituais". Um sistemático afirma-me que sua fonte é a Bíblia - o que faz dele mau filólogo, mau exegeta, mau leitor. No fundo, um alegorizador normativo, ou, vai ficando na moda, um animador de tradições plurais. Naturalmetne que esse bom sistemático oderá, cntradizendo sua índole protestante, fundamentar-se numa revelação do Espírito - mas, com isso, terá lançado na lata do lixo o fundamento não-católico do Cristianismo - as Escrituras... Lutero, Lutero, que fizeste?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS1. Para ler mais: Contra a Tortura
PS2. Para minha Tese sobre Gn 1,1-3, cf. aqui.

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