segunda-feira, 5 de outubro de 2009

(2009/525) Da memória e das tradições


1. Eu não me recordo de absoluta nada ( se o absolutamente permite uma ou duas exceções que já nem sei se são "reais") de minha infância. Minha vida começa aos cinco, seis anos. Daí para trás, nao me perguntem nada que não sei/lembro. Daí em diante, lembro algumas coisas. Poucas. As cenas que me ficam, são aquelas extraordinariamente felizes ou infelizes. Na média, minha memória descarta. Bel me conta coisas de nossa vida juntos. Foi, Bel? Foi, amor, você não lembra? Não. Quase nunca. Às vezes, não lembro de coisas de há um ano... E meus alunos ainda acham que tenho boa memória - não, teho muita dedicação.

2. Aí eu acho muito engraçado que se fale em "memória" dos povos e de "tradições". Dificilmente, diz-se que são invenções, articulações em torno de palavras e/ou cenas mais ou menos distantes, um nome histórico, e mais nada - todo o resto, invenção. Há os que o dizem. Mas os divulgadores, os que se instalam nas franjas das teorias da memória, raramente o confessam. Mas é a moda. É como na pesquisa bíblica - é mais fácil você escrever sobre a história da recepção de textos, do que falar dos próprios textos. O que me parece uma situação reveladora - se não se consegue captar o sentido de um texto, como captar a sua recepção... por meio de textos? Há, certamente, uma razão psicológica/sociológica para se abandonar os textos, e se dedicar à sua recepção... Bem, certamente é bem menos necessário prestar contas (se me faço entender)...

3. Eu não me importo com a moda das memórias e das tradições. Na prática, isso dá ocasião para muita abordagem superficial, que você mal consegue segurar com a mão. Mas não me incomoda. Com uma exceção - se tais tradições começam a se dizer "históricas", se o discurso raso e mal-acabado faz dessas tradições vestígio exegético... Tradições dos povos, memória coletiva, ai, ai.. Se um grupo não sabe nem ler seus próprios textos, o estatuto de suas memórias só pode ser mítico, só pode ser imaginativo, só pode ser inventado, fabricado, construído. Resta ver "por quem".

4. Cada vez que desço até os porões do Antigo Testamento, e, cuidadosamente, vasculho seus escombros, até agora, pouco invariavelmente, descubro que o que se diz dos textos nada ou quase nada tem a ver com o que eles diziam (não posso fazer muita coisa em relação aos que duvidam de que seja possível recuperar o sentido que eles diziam - dou de ombros, e continuo meu trabalho). Os textos falavam de coisas absolutamente diferentes do que eles, hoje, são forçados a falar - então, quando discursos de memória e tradição se fazem basear nesses textos, sinto-me ofendido. Minha "inteligência" é ofendida.

5. A exegese, para mim, é uma defesa. Porque me vejo afrontado por construções performativas o tempo todo, monopolizações "espirituais" e "culturais" de memórias fabricadas nas masmorras da política - por isso é que me dedico à desconstrução sistemática da base das memórias. Uma a uma, as pedras que sustentam a catedral da memória e da tradição vão sendo arrancadas, a catedral vê-se, aos meus olhos, construída sobre nada, sobre pó, sobre má filologia, e, então, assopro, e, como a casa dos porquinhos, ela rui... A exegese é o lobo mau, e, espero, não caia o exegeta em óleo fervente... E, se cair, também, que se dane... Inventam uma memória pra mim. Nesse caso, contra os textos que eu deixar...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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