Estudando Teologia
por
Robson Sampaio Guerra
Agosto de 2009
Tenho trinta e cinco anos, casado há quase dez, não tenho filhos. Como se diz, nascido e criado no Evangelho. Sou de família batista. Meu avô paterno era pastor evangelista. Meu pai foi regente de coral, integrante de quartetos, um batista convicto, também nascido e criado na igreja. Meu irmão mais velho é pastor, um excelente pastor, diga-se de passagem. Fui Embaixador do Rei. Pra quem não sabe trata-se de uma organização batista destinada aos meninos de nove a dezesseis anos de idade. Lá aprendemos sobre missões, doutrinas batistas, história dos batistas etc. Também vamos a acampamentos, jogamos futebol, essas coisas. Boa parte de minha formação religiosa deu-se nessa época. Bons tempos. Chegado o momento, fui para a União de Jovens. Herdando alguns talentos de meu pai, liderei grupos musicais na igreja. Sei cantar, sou guitarrista. Cheguei a ser líder de louvor. Nessa época já era um batista menos tradicional. Era membro, então, de uma igreja onde batíamos palmas, dávamos aleluias e até dançávamos – timidamente, pois se tratava de uma igreja batista com vários membros tradicionais. Mudei de igreja. Fui para outra igreja batista. Liderei o louvor numa de suas congregações. Em dado momento cheguei à conclusão de que necessitava de especialização, pois era um líder da igreja. Decidi estudar Teologia...
Na verdade, já havia tido algum contato com a Teologia. Conversava bastante com meu irmão mais velho – hoje pastor – quando ele estava no seminário. Pela primeira vez tive contato com o conceito de mito, mas não me aprofundei apesar de achar bastante interessante. Lembro-me de que percebi que no seminário lida-se com questões desconcertantes e pesadas. Achei mais interessante ainda, mas nessa época – era adolescente – queria mais era jogar videogame, ver desenho animado – de preferência os japoneses – e tocar violão – engraçado, ainda faço isso hoje. Foi melhor assim. Ainda não era o momento de encarar o que encaro hoje.
Bem... Toda essa introdução serve para que fique bem situada minha condição quando cheguei ao Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil – Campus Nova Iguaçu. Tinha as melhores expectativas. Almejava dedicar-me ao pastorado com ênfase na educação religiosa. Via na instituição supracitada o melhor lugar para minha formação – e, em minha opinião, trata-se da melhor na Baixada Fluminense. Foi o lugar onde meu irmão pastor estudou, então, já tinha a evidência da qualidade da graduação. Esperava aprender sobre Teologia Sistemática, sobre a Bíblia etc. Pensava que a Teologia Sistemática era o cerne da formação pastoral. Hoje penso diferente.
Lembro-me do meu primeiro dia no seminário como se fosse hoje. A turma era pequena. A primeira aula foi de estágio. Depois veio ele, cabelo liso repartido no meio, barbudo, camisa clara, calça jeans e um monte de livros na mão. Era o Osvaldo. Aula de Teologia e Método. Ah, se eu soubesse o que me esperava... E lá vem a primeira questão: o que é Teologia? Disparei: basicamente, estudo sobre Deus – hoje eu morro de rir quando lembro. Na verdade, não respondi muito diferente dos outros. Osvaldo nos apresenta outra opção: Teologia seria o estudo do pensamento do homem e da mulher a respeito de Deus ou, num termo mais acadêmico, do Sagrado. Questão fundamental.
Hoje, estou no sexto período. Aprendi que para uma boa formação teológica é necessário lidar com as questões que realmente importam, estas são as questões fundamentais, nucleares. Se não for assim, a formação é superficial, passa a ser repetição programática de conteúdos já formalizados pela Tradição.
Aprendi outra coisa: ou se faz Teologia em diálogo com as Ciências Humanas e Naturais ou se faz Teologia instrumentalizando estas, mas sem que interfiram no seu núcleo tradicional, ou simplesmente negam-se aquelas em nome da fé. Optei pela primeira.
Estudar Teologia de forma realmente acadêmica, ou seja, crítica, científica, provoca sérias rupturas, desconstruções graves. É olhar para si e perceber o quanto se era ingênuo e infantil e então se perguntar: por que não me contaram isso antes? É um amadurecer doloroso. Ver a magia tornar-se pó não é fácil. Perceber que o Cristo da fé é um construto antropológico faz perder o sono. Dói. E muito.
Descobrir-se. Conhecer a si mesmo e o meio em que se vive. Compreender o contexto onde os construtos teológicos são formados. Saber da(s) história(s) por trás de todo desenvolvimento teológico que chega até nós como a Verdade revelada. Tragédia. Mas, também, renascimento. Ora, o parto, o nascer é uma ruptura, um momento trágico para o que nasce. Não é assim que se cresce, que se desenvolve e amadurece? Com rupturas e tragédias?
Sociologia, Antropologia, Psicologia, Epistemologia, Filosofia, Hermenêutica, História, Sociologia da Religião, Psicologia da Religião, Fenomenologia da Religião, Exegese. Tudo isso está lá no currículo. Para quê? Se não é para levar todas essas ciências a sério, para quê estão lá? Converti-me a todas elas. Tive contato com Laraia, DaMatta, Peter Berger, Merval Rosa, Croatto, Eliade, Feuerbach, Nietzsche, Heidegger, Marx, Freud, Jung, Prigogine etc. Para quê? Para demonizá-los a todos ou para levá-los a sério? Conheci Edgar Morin! Como não levá-lo a sério? Decidi levá-los a serio, sim, e criticamente. Todos devem ser lidos criticamente. Uma boa formação teológica tem que ser assim, crítica, como diz Küng, histórico-crítica – pelo menos pra mim.
Ler Feuerbach foi “a” ruptura. “Nasci de novo” ali. Feuerbach foi um “antes e depois” na minha vida. Foi trágico e libertador. O contato com o pensamento complexo de Morin foi outro momento marcante. Aí comecei minha reconstrução. “Os sete saberes necessários à educação do futuro” e “Como educar na era planetária” são fundamentais. Espero o momento de ler seu “O Método”. Peter Berger também foi fundamental com o seu “O Dossel Sagrado”.
Finalmente o contato com a Teologia Bíblica. Exegese histórico-crítica e histórico-social. A disciplina Ciências da Bíblia foi uma preparação fundamental para entrar no universo bíblico. De novo as questões fundamentais: quais os critérios para lidar com a Bíblia? Questões sobre inspiração e teoria literária. Fiz as minhas escolhas e tenho lidado com suas conseqüências. Graves, todas elas. Então, é aventurar-se pelos caminhos da pesquisa bíblica.
Descobrir que a Bíblia não é exatamente aquilo que nos ensinaram é para um cristão protestante batista um direto no queixo. Mas, lidei bem com a questão, já estava um pouco calejado. Amadureci. Hoje encaro a Bíblia como uma coletânea de textos que expressam concepções das mais variadas sobre questões religiosas, políticas e sociais. Cada texto tem seu momento na história. Tratam de questões de sua época. Por trás deles há pessoas, homens e mulheres e suas questões existenciais, sociais e políticas. Pesquisar a Bíblia teria a ver com ir atrás dessas pessoas, desses eventos, reconstruir essas histórias. Não, a Bíblia não é uma unidade harmônica. É uma variedade de vivências, de concepções, de teologias. Nela podemos perceber disputas, tensões, embates, e também, momentos belos e de esperança. Enfim, a Bíblia é um reflexo da alma humana. Divinamente humana, humanamente divina.
Ainda estou no início de uma caminhada. Dura caminhada. Muitas vezes solitária. Aos poucos vou conversando sobre tais assuntos com minha esposa, mas faço isso respeitando o tempo dela. Cada um tem seu tempo. Aos poucos ela vai “captando a mensagem”. Tens a tua Bel. Tenho a minha Cris – aliás, ela é que me tem. Coitado de quem está nessa caminhada e não tem ninguém.
Estamos, acredito, num momento de transição da Teologia. A Teologia tem sido posta em xeque na Academia, pelo menos no Brasil. E a coisa acontece lá no MEC. Já que a Teologia é o que os teólogos e teólogas fazem dela, os rumos que ela poderá tomar dependerão das escolhas que estes farão: ontologia, metáfora ou fenomenologia? Qual será o futuro da Teologia no Brasil? Eu já fiz a minha opção: uma Teologia científica, fenomenológica, histórico-crítica. Sei das conseqüências disso. Sei que é possível que esteja entrando numa canoa furada, que esteja completamente equivocado, mas como ainda não dei de cara com a parede (metáfora do labirinto) vou seguindo em frente.
Bem... Tudo isso aconteceu porque tive a sorte – será sorte? – de encontrar no seminário professores como o Élcio, o Osvaldo e o Alessandro. São professores, não inculcadores ou discipuladores. Abrem caminhos, despertam dúvidas, crises, questionamentos. Ser professor não é dar respostas, é fazer perguntas. E cabe a nós alunos, aprendizes, aprender a fazer as perguntas certas. Não sei o que aconteceria se fosse estudar em outro lugar. Não é todo seminário ou faculdade de Teologia que permite essa abertura. A maioria trata-se de EBD de luxo, verdade seja dita.
Estudar Teologia tem sido uma experiência única, transformadora, enriquecedora, ainda mais pela minha origem – nascido e criado na Igreja Batista, como disse na introdução. Amadureci, continuo amadurecendo, ainda há muito que aprender. Às vezes penso se outra graduação – Sociologia, Filosofia, Antropologia etc – provocaria o mesmo impacto na minha vida. Acho que não. Cursar Teologia – com esta abertura às Ciências Humanas, é claro – é uma experiência profunda. É um recomeçar, repensar tudo e reconstruir.
Hoje não lidero coisa alguma na igreja, preferi me afastar de qualquer liderança, eventualmente prego. Decidi que é mais saudável para mim e para os outros que primeiro termine a graduação, resolva minhas crises existenciais, para depois, então, voltar, se for o caso, a liderar ou assumir alguma função na igreja. É um crime o que fazem com os/as seminaristas em algumas igrejas. Mal começou a graduação e já dão o púlpito pra ele/ela, mandam ele/ela pra EBD ensinar – como se já soubesse tudo – e nem se dão conta que ele/ela está no meio do furacão da crise existencial – que estudar Teologia de verdade, à vera, é passar por crises graves. Preferi, então, para me preservar, afastar-me, ficar no stand by. É mais saudável.
Pretendo seguir em frente, terminar a graduação, especializar-me e dedicar-me ao ensino teológico acadêmico e tentar fazer uma ponte entre a academia e a igreja, se for possível. Penso que seja necessário.
Quero uma Teologia fenomenológica, histórico-crítica, complexa e transdisciplinar. Gostaria muito de poder contribuir para a Teologia e a pesquisa bíblica. Ah, tem muita estrada pela frente, muita pedra pra levantar, muito buraco pra cavar, muita estrada pela frente...
Encerro com Toninho Horta e Fernando Brant:
Manoel, o audaz
Se já nem sei
O meu nome
Se eu já não sei parar
Viajar é mais
Eu vejo mais
A rua, luz, estrada, pó
O jipe amarelou
Manoel, o audaz
Manoel, o audaz
Manoel, o audaz
Vamos lá, viajar
E no ar livre
Corpo livre
Aprender ou mais, tentar
Manoel, o audaz
Manoel, o audaz
Iremos tentar
Vamos aprender, vamos lá...
3 comentários:
Diante de teu texto, Robson, chego à conclusão que nao fui/sou, mesmo, talhado para ser guru nem xamã nem qualquer cisa que seja. Você reproduz quase que literalmente muito de meu próprio pensamento, e, vendo-o assim reproduzido por um ainda "aluno" (termo horrível!) me faz sentir frio na espinha e quentura na barriga, ao mesmo tempo!
Não, não consigo imaginar-me na frente de um grupo de "discípulos", determinando-lhes os discursos, os gestos, as ações. Contento-me em vê-los amadurecer e voar.
Agrada-me vê-lo, contudo, refletindo com base nas Ciências Humanas. Isso me agrada. E isso tem muito de desprendimento. Quando nos afeiçoamos a elas, nossa consciência opera mais metodológica do que conteudisticamente...
Vai em frente. Seja como El Greco. Deixe Ticiano em seu scriptorium, e (re)construa sua percepção da vida.
Parabéns.
Osvaldo.
Olá prof. Osvaldo e olá Robson,
Embora não conheça o Robson pessoalmente, a leitura do texto foi como olhar-me no espelho, pois a estrutura me é muito semelhante, família Batista tradicional, Embaixador do Rei, líder de jovens, corais e etc.
Foi um bom texto. Uma declaração que representa a realidade de vários (diria até maioria, mas seria presunção minha) seminaristas (prefiro o termo “universitários”) que conheci.
Seria de bom grado que pastores tivessem acesso ao teu texto para, movidos pela compaixão que deveriam expressar e, julgo eu, indispensável ao ofício pastoral, mudar suas práticas em relação aos seminaristas.
Quando falei com o pastor da igreja que freqüentava que pretendia ir para o seminário, (sim, fui pedir autorização para entrar no STBSB) ele disse que não concordava que pessoas sem “chamado” fossem para o seminário, pois lá era um local em que “existiam pessoas que não acreditavam em Jesus” e apenas o “chamado” seria a “âncora” que garantiria a perseverança do “seminarista”.
Creio que é por isso que os seminaristas (e aqui não preciso mais das aspas, pois não são universitários mesmo) são sobrecarregados com “projetos” de evangelização, assistência aos irmãos ausentes, cultos jovens, grupo de diáconos e por aí vai.
As inúmeras atividades são a “âncora” que não permitem que seminaristas leiam os livros das disciplinas. Com muito mais de doze trabalhos, nenhum ser humano tem tempo para ler e pensar sobre obras como “O Método”, “A Cidade Antiga”, “Filosofia da Ciência”, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” entre outras que ajudam no processo de desconstrução necessária para a dessacralização dos conteúdos.
Creio que a igreja precisa passar por uma reforma pedagógica e mudar do Educare para o Educere. Muito difícil de acontecer. Mas não vejo ainda outra solução.
Impedir que as pessoas tenham acesso ao conhecimento é criminoso e muitos pastores (mais uma vez desejo dizer todos) são culpados. Eles enxergam a vida religiosa do indivíduo (embora que até a visualização da pessoa como indivíduo já seja alvo de controvérsias) como parada e por isso a âncora é necessária. Esta posição parece muito com a idéia de posse e, portanto, dogmatismo.
Escreveria sobre “levantar âncora!”, mas chega de termos náuticos.
Se devo me afastar de locais em que estejam pessoas que não acreditam em Jesus (seja lá qual Jesus que o pastor se referiu) então não vou mais ao mercado, à padaria, à universidade, à farmácia e nem à igreja! E o diálogo com as Ciências Humanas? Coisa do demônio...
Abraço,
Harlyson Lopes
Quanto a mim. foi no seminário - nesse seinário, em Nova Iguaçu - que me encontrei, que me descobri.
Não trocaria essa caminhada pela anterior, e, conquanto essa seja um desdobramento daquela, só assim ela, aquela, faz sentido.
Osvaldo.
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