sábado, 6 de junho de 2009

(2009/334) Fenomenologia da Religião e o "Memorial da Ceia do Senhor"


1. Ontem, durante a aula de Fenomenologia da Religião, enquanto apresentava aos alunos a série "cuspe-e-giz" sobre rito, penúltimo capítulo do livro de José Severino Croatto, As Linguagens da Experiência Religiosa, passou-me uma idéia pela cabeça, e a compartilhei com os alunos.

2. Para os aproximar do conceito de rito, e isso por meio de um exemplo que os tocasse, falei da "Ceia do Senhor". Para chegar a tanto, primero, pinçamos algumas declarações de Croatto sobre o rito. Ei-las: "o rito participa do símbolo e do mito. Se o símbolo é uma coisa que transignifica outra (...), o rito é um gesto que também significa outra realidade. Como ação, aponta para um determinado efeito. Se o símbolo é díctico (isto é, manifesta, expressa), o rito é performativo, 'faz'" (p. 331). "No rito, os seres humanos fazem, o que no mito fazem os Deuses" (p. 333).

3. É que "o mito 'relata' uma ação dos Deuses que funda uma realidade presente. A recitação do mito (em um contexto de sacralidade) tem uma força atualizadora do acontecimento primordial (...). Mas é no rito que a repetição daquela ação divina é mimetizada como ato litúrgico. As duas 'ações' sintonizam, mas a segunda ação (a ritual) repõe em ação a primeira. Os atos divinos são atualizados na cena ritual" (p. 332).

4. Pois bem. Falei-lhes da "Ceia", conforme ela tem sido oficiada em ambiente batista. Ali, o "pão" converteu-se em "cubos, quadradinhos de pão de fôrma". Você olha, e vê uma bandeja cheia de pedaços de cubos de pão de fôrma. Sumamente artificial. Você só sabe que aquilo é pão, porque ali, naquela hora, só pode haver "pão". Mas, na vida real, ninguém come cubos de pão de fôrma. Se come pão de forma, é em fatias... Ora, como essa visão pode proporcionar a encenação da "Ceia"? Como pôr um pedaço ínfimo e cúbico de pão de fôrma na boca há de ritualizar o mito do sacrifício? Como o participante do rito vai poder experimentar a re-atualização do mito? Hum, com um esforço de imaginação...

5. A "Ceia", contudo, deveria ser um ritual significativo. Cada elemento, pão e vinho, deviam guardar a forma e a plasticidade do pão e do vinho, a imagem evocativa do significado do pão e do vinho. Não sei quanto a vocês, mas, a mim, cubos de pão de fôrma são deploráveis... Um aluno perguntou-me quanto ao "suco de uva". Fiz-lhe saber que a encenação consiste na articulação entre ação gestual e significado - se o líquido vermelho na taça transparente é vinho não é tão importante quanto ter a aparência de vinho, para que meu espírito possa apropriar-se da imagem da taça e encenar o mito. Melhor que fosse vinho, naturalmente, mas o fato de ser suco de uva não tem paralelo no absurdo do pão de fôrma cortado em cubos...

6. Todavia, perdemos completamente o cuiado com o ritual. Por outro lado, caímos no rubricismo - que Croatto também descreve. Porque se acaba dando mais atenção à mecanicidade operativa dos gestos, do que, propriamente, ao significado do ritual, "chega-se ao 'rubricismo', ao cuidado meramente formal da ação ritual em detrimento da atenção ao mito (ou querigma) intencionante, que é sua essência significativa" (p. 354-355).

7. De fato, quanto à "Ceia", o que se discute é quem pode e quem não pode - ultra-restrita, restrita, livre, ultra-livre, se diácono pode oficiar ou só servir, se não pode, se diaconiza, se missionária no front, e isso, e aquilo... E o que é sumamente importante, a estrutura formal e significativa da encenação, do que depende a sua capacidade de catalisar a expriência mística do crente, puff...

8. 1985. Batizar-me-ia em duas semanas, mas, ainda não era batizado. Cantava no coral, contudo. Isso podia! Lá estava eu. Era "Ceia". Seria minha primeira... quer dizer, eu pensava... O presidente do corpo diaconal passou, oferecendo a bandeja com os cubos de pão de fôrma. Estiquei a mão e peguei um. Um tapa, firme, leve, mas severo, fez-me devolver o pão...

9. Rubricismo. Quanto ao rito, em si, nada. Legalismo sem sentido. Risco de morte. Farisaísmo de sábado. Quando, o que me importava, era encenar o sentido do mito...

10. Quando a plástica da "Ceia" desaparece, quando não importa a forma, a estética, a arte, a imagem, mas importa apenas a "doutrina" que se proclama lá na frente... Quando seria a mesma coisa meramente levantar-se e repetir o "texto" do Memorial, sendo a encenação do rito desnecessária, o que se vai evidenciando na banalização dos elementos, cubos de pão, mini-cálices de suco de uva, ora, que mensagem, ainda que inadvertidamente, está-se passando? Não se está dizendo que não há grande importância na "cena", mas, apenas, na "mensagem"? Ora, mas se é a mensagem - o mito - e não a encenação - o rito - que tem importância, para que, então, o rito? Uma ordenança - literalmente - sem sentido...

11. Quando se dá conta, a Igreja já perdeu a relação afetiva com o rito, porque ela veio aprendendo, há anos, que o rito é menor, meramente decorativo, ao passo que, a doutrina, a leitura "pastoral" do texto bíblico, essa, sim, é relevante. Transforma-se a "Ceia" num sarau... A liturgia, numa reunião de filosofia. O sentido plástico, cênico, a participação corporal no gesto fundante do mito, traduzido no rito, re-atualização do gesto do "Deus" - cadê?

12. É curioso, e muito, que quase todos os capítulos da Fenomenologia da Religião coloquem a Teologia e a Igreja contra a parede, dado o seu discurso anacrônico e descasado da consciêcia moderna. Contudo, o capítulo do rito, se levado em conta, poderia proporcionar um novo fôlego litúrgico na realização da "Ceia". Um retorno ao símbolo. Um retorno ao rito. Uma re-conscientização do mito significante da comunidade.


OSVALDO LUIZ RIEIRO

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