1. Não, não é para que me compreendais. É ao vento, apenas, que falo, porque estou longe dela, e minha alma, contudo, de falar precisa, mas, sem ela, com quem? Vento, vai, escuta-me...
2. Vês? As rapinas se aproximam, armam o cerco, aproveitam a temporada, ensaiam passos de dança, farfalhar de asas, mancomunam-se entre chiados e chocalhos, entre grunhidos e ranger de dentes. Alçam vôo... Vejo as asas estendidas, a cabeça reta, os olhos fixos na caça. Se não vês, é que perdeste o faro, vento, cansado de subir, vento, essas colinas. Mas eu, por alguma razão para isso adestrado, calejadas as juntas, esfolada a carne, antevejo o próximo lance, o bater de asa, leve, para mudar de rumo, a garra projetada, a asa a sustentar o vôo, o cara, o pescoço, a jugular...
3. Isso, aqui em cima... Mas olha lá embaixo. Lá embaixo, observa, vai um gado miúdo, um gado de pedigree, semente escolhida e pura, só ela é boa e selecionada, de concurso e fita azul, de escol. É menos voraz que as rapinas, ele, mas, nem por isso... Vai ele, em bando, seu bando, todos caprinos e ovinos de sangue azul, nobilíssimos, caminhando, uma parada aqui, um oásis ali, uma relva a mordiscar aqui, uma braquiara a arrancar ali, uma digestão ruminante, um ar bovino, um desdém, um despeito, um desprezo, um sorriso de escárnio...
4. Os dias que se aproximam, vento, são dias ruins. Aquela semana que vem, se nela não há um castelo em que me abrigue, hei de ficar, vento, entre a rapina e o desdém miúdo dos despeitos bovinos... Não percebes que se forma uma interseção à frente? Uma formação de tempestade, em que ovinos e rapinantes hão de desferir os golpes?
5. Maldita consciência! Maldita honra! Malditos princípios! Ah, como são capitalistas! Como cobram bem! Como sabem dar preço, e caro, às nossas ousadias de consciência, às nossas inegociações, às nossas manias, à nossa vontade, à nossa autonomia, à nossa patológica e inegociável subjetividade... A rapina te caça, os ovídeos de pedigree te desprezam, e tu ficas assim, quérulo de Bel, que é o que te cura...
6. Quisera ser um passarinho pequeno, um pardal de vila, a banhar-se na areia, a beliscar pedrilhas, descuidado do ser. Voaria para longe, e nunca mais voltaria. No entanto, nasci homem. Morro, assim, dia a dia, contando as horas, ocupando-me, preocupando-me, que sofrer duas vezes é meu castigo e calvário.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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