segunda-feira, 18 de maio de 2009

(2009/268) Exegese e holograma


1. Estou a morrer de dor de cabeça. Melhor dar uma parada. Meu carro está a vazar gasolina desde ontem, e o cheiro está impregnado em tudo, em todos, em cada canto. Daqui a pouco é hora agendada para o mecânico, e lá se vão alguns dias a pé - de novo... Além disso, a dor de cabeça vem de eu estar há alguns dias em cima da Bíblia Hebraica, atrás dos bene 'adam, dos bene 'ish e, agora, do ben 'adam. A honestidade intelectual cobra caro, e o troco são dores de cabeça - literalmente... É o preço de meter-me onde não fui chamado.

2. Não é tarefa fácil - não mesmo! - tentar reconstruir o sentido original de determinados termos do passado - no meu caso, na Bíblia Hebraica. Regra incontornável: o sentido do termo é aquele com que ele foi grafado, nada mais, nada menos. A tradição faz uma sujeira danada, montanhas de lixo em cima dos sentidos originais. Sua (minha) ideologia faz um barulho danado - uma gritaria infernal vem desde dentro de você, ecos de "verdades" de tribo, de mercado, de caverna, de teatro, para citar Bacon.

3. Poluição!

4. Para realizar meu trabalho, não me resta outra alternativa que não reconstruir o contexto de leitura da narrativa que interpreto. Não adianta só ler a narrativa - isso de pouco vale. Tenho de lê-la na medida em que ela foi lida, de modo que tenho de lê-la como ela foi lida. Isso significa que tenho de lê-la como ela foi lida para quem foi lida, naquele lugar e naquela circunstância, com aqueles referênciais, com aqueles objetivos. Não tenho papel nas mãos. Tenho voz e fala. Não é com os olhos que tenho que ler - é com os ouvidos. Os olhos, reservo-os para o salmista, de pé, o rei, o liturgo, o orante, aquele que, se não redigiu a peça, a lê. Os ouvidos, empresto-os a essa audição.

5. Há uma estratégia lá. Lê-se para um fim. Há um contexto lá. O contexto é o alvo da leitura. Mesmo as pessoas que lá estão, ouvindo, mesmo elas constituem o contexto. O destinatário, singular ou plural, não é uma grandeza isolada - é contextual. Estar situado é tornar-se mais do que ser apenas citado, porque o contexto acrescenta sentido à presença da platéia, se é uma liturgia ordinária, uma convocação extraordinária, um encontro subversivo. Karl-Otto Apel disse que textos respondem. Sim. Mas mentem, também. Para não mentirem, é preciso ouviro eco que reverbera de sua lição primeira...

6. E, todavia, puff!, tudo desapareceu na lava imemorial do tempo. Quis a ironia dos ponteiros que sobrevivesse tão somente o veículo de um elemento desse evento - uma página. Mas a página fora, apenas, veículo. O que ali vai escrito, no suporte físico, é, contudo, apenas, também, suporte, agora da intenção noológica, do pensamento, da vontade de um sujeito, de dois, de dez, históricos. São mortos, agora. Pó. Os ossos de um estão naquela flor, os do outro, no corpo de um roedor, os do outro, esperam pela curiosidade mamífera de um arqueólogo. E, contudo, é a intenção deles, aquela, daquele dia, naquele evento, que me abre a porta da compreensão dos termos, das frases, das orações dessa narrativa. Sem isso, tudo é pura literatra, em que só é necessário arte, uma lufada de criatividade, e pronto. Ou autoridade para o dizer, sem que pudesse.

7. Holograma. A narrativa é um holograma exegético de um pedaço do passado. Não sou mero exegeta. Sou um arquiteto e cenógrafo, a reconstruir uma circunstância situacional. Sou um historiador e arqueólogo, a reconstruir vozes, pessoas, perfis, intencionalidades. Sou um hermeneuta e exegeta, a relacionar linguagem e fala mortas, narrativa e discurso mumificados. Sou, enfim, um mágico que tem de dar conta das prestidigitações - cada ato de magia e necromancia uma prestação de conta. Finalmente, nada mais do que um bisbilhoteiro.

8. E, claro, alguém qe tem uma dor de cabeças daquelas...


OSVALDO LUZI RIBEIRO

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