quinta-feira, 19 de março de 2009

(2009/089) Da fé-enquanto-encontro


1. Há alguns anos, escrevi, a pedido, um livrinho sobre , que a MK publicou. Nada de excepcional, eu diria, até porque a editora solicitou-me, a rigor, a todos os autores da coleção, que tentássemos o máximo de simplicidade, dado que a coleção se destinava a um público evangélico pouco familiarizado com as questões da teologia acadêmica. Sob esse recorte, não deixaria de recomendá-lo. Se, contudo, eu o analiso por si mesmo, enquanto resultado, decido-me por guardá-lo na gaveta e reescrevê-lo inteiramente.

2. Exceto no que diz respeito às quatro classificações do termo "fé": fé-enquanto-encontro, fé-enquanto-ensino, fé-enquanto-encanto e fé-enquanto-entrega. Ainda penso que essa foi uma "sacada" muito boa - modéstia à parte. Penso mais: que ela se preste, realmente, à classificação dos conteúdos comuns a que costumamos nos remeter quando usamos a palavra "fé".

3. Chamamos de fé muitas atitudes que são, a rigor, diferentes entre si. A mística do mistério, por exemplo, já não é mais a crença em dogmas ou doutrinas - e, todavia, fé é o termo que usamos para as duas atitudes. Além disso, a "oração", em última análise, magia, é um exemplo de fé-enquanto-encanto, de resto, totalmente diferente, até relativamente contrária, à sua companheira, a fé-enquanto-entrega, que, por força de seu espírito de otismismo, prescinde, mesmo, de orações - e, contudo, ambas são tratadas como atitudes de fé: a fé que, acredita, será atendida, enquanto a fé que, acredita, nem precisa pedir...

4. Penso que essa confusão de atitudes (mística, dogmática, magia e otimismo), todas elas reunidas sob a mesma rubrica - fé -, seja a causa de enormes problemas no ensino teológico, mormente o nosso, brasileiro, cuja base constitui-se de tradição, doutrina e normas denominacionais.

5. No campo do ensino teológico, propriamente dito, o conflito se estabelece em torno da confusão infernal entre fé (mística) e fé (doutrina). O estudante confunde mística e crença dogmática, e, assim, torna-se imprestável à reflexão crítica conseqüente. No extremo, assume atitudes de "martírio", de "cruzada", de "apologética", na defesa da "fé". Coitado - não percebe que aí a fé é o maior dos exemplos de ignorância crônica...

6. A fé-enquanto-encontro constitui, ao contrário da fé-enquanto-ensino, que é fundamentalmente política, uma atitude estética. O homem e a mulher tomados por essa atitude foram atingidos/deixaram-se atingir por uma abertura estética em face da "realidade", ultrapassando-a, de forma intuitiva, hermenêutica, "mística", ultrapassando a linha imaginária do limite físico da matéria, e transportando para esse mistério estético todas as angústias, sejam angústicas existenciais, sejam angústias civilizatórias. Acima de tudo, não se trata de uma experiência de conteúdo - ela nem parte de conteúdos dados, nem chega a quaisquer conteúdos. Ela é tão somente uma experiência de mistério que deve permanecer mistério, uma abertura para a inefabilidade que deve permanecer inefável.

7. A fé-enquanto-encontro, sendo estética, cnquanto mística, é, a rigor, o encontro do sujeito consigo mesmo por meio do "espelho" da transcendência mítica postulada e experimentada hermenuticamente. Nem o limite é dado, é postulado, nem a realidade última, mítica, é dada, é, igualmente, postulada, e, enquanto postulação mítica/mística, serve de ricochete para a auto-contemplação do eu místico. Ela é o desdobramento arquetípico da solidão por meio da mimese do(s) "Outro(s)/Alguma Coisa". Tudo, aí, absolutamente tudo, é "pura" experiência, mediada culturalmente, seja em seus contornos plasmáticos, cenográficos, seja em seus conteúdos pontuais.

8. Dizer que essa fé não constitui uma experiênca de conteúdo é dizer que ela não pode ser teísta, porque o teísmo é doutrina, especulação filosófica humana. Nem panteísta, nem deísta, nem ateísta, ´nem anímica, nem nada que o valha, porque tudo isso são conteúdos humanos, logo, políticas comunitárias, conteúdos engendrados na história de povos, como o sabe, insofismavelmente, a Fenomelogia da Religião. Logo, nenhuma doutrina, de nenhuma espécie, de nenhum povo, de nenhuma época, de ninguém, é-lhe tributária, conquanto, a seu tempo e modo, todas o sejam.

9. Nenhuma fé-doutrina, nenhuma fé-enquanto-ensino é o mesmo ou tem parentesco privilegiado com a mística da fé-enquanto-encontro. Daqui não se chega necessariamente a nenhuma fé-enquanto-ensino em particular, conquanto se compreenda por que e como se chega a todas. A fé (doutrina) de um povo, de uma gente, de uma comunidade, são invenções dessa gente, eventualmente de algum poder aí concentrado, invenção essa que usurpa - é o termo - a experiência aberta e inexprimível da estética mística subjetiva. Não, ela não substitui, ela castra, adestra, atacanha, empobrece, aprisiona, atrofia, mata, a estética da experiência hermenêutica da abertura ao mistério - filho da consciência humana, sua outra metade. Nisso, a doutrina é assassina, conquanto, por outro lado, também ela, um impulso antropológico.

10. Eu aprendi a me relacionar de modo adulto e maduro com essa fé-doutrina, sempre menor do que eu, menor do que nós: nada que ela me diz me encanta, me enfeitiça - mais. Sei quem ela é, como a criança que, um dia, flagra o pai a pôr presente sob a árvore, e o Papai Noel se despede, lentamente, naturalmente, sem dores maiores, para sempre. A fé-doutrina é o mito que não quer ir embora, que quer ficar - e fica. Não mais comigo.

11. Fica na minha experiência a fé-enquanto-encontro, que, insisto, é experiência estética de abertura para o mistério sem nome, e que sem nome fica, sem nome, sem figura, sem conteúdo, meramente abertura estética. Essa fé é doce e natural. Ela pulsa em cada batida do músculo cardíaco, ao ritmo do balanço da cadeira na varanda...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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