1. Há alguns anos, escrevi, a pedido, um livrinho sobre fé, que a MK publicou. Nada de excepcional, eu diria, até porque a editora solicitou-me, a rigor, a todos os autores da coleção, que tentássemos o máximo de simplicidade, dado que a coleção se destinava a um público evangélico pouco familiarizado com as questões da teologia acadêmica. Sob esse recorte, não deixaria de recomendá-lo. Se, contudo, eu o analiso por si mesmo, enquanto resultado, decido-me por guardá-lo na gaveta e reescrevê-lo inteiramente.
2. Exceto no que diz respeito às quatro classificações do termo "fé": fé-enquanto-encontro, fé-enquanto-ensino, fé-enquanto-encanto e fé-enquanto-entrega. Ainda penso que essa foi uma "sacada" muito boa - modéstia à parte. Penso mais: que ela se preste, realmente, à classificação dos conteúdos comuns a que costumamos nos remeter quando usamos a palavra "fé".
3. Chamamos de fé muitas atitudes que são, a rigor, diferentes entre si. A mística do mistério, por exemplo, já não é mais a crença em dogmas ou doutrinas - e, todavia, fé é o termo que usamos para as duas atitudes. Além disso, a "oração", em última análise, magia, é um exemplo de fé-enquanto-encanto, de resto, totalmente diferente, até relativamente contrária, à sua companheira, a fé-enquanto-entrega, que, por força de seu espírito de otismismo, prescinde, mesmo, de orações - e, contudo, ambas são tratadas como atitudes de fé: a fé que, acredita, será atendida, enquanto a fé que, acredita, nem precisa pedir...
4. Penso que essa confusão de atitudes (mística, dogmática, magia e otimismo), todas elas reunidas sob a mesma rubrica - fé -, seja a causa de enormes problemas no ensino teológico, mormente o nosso, brasileiro, cuja base constitui-se de tradição, doutrina e normas denominacionais.
5. No campo do ensino teológico, propriamente dito, o conflito se estabelece em torno da confusão infernal entre fé (mística) e fé (doutrina). O estudante confunde mística e crença dogmática, e, assim, torna-se imprestável à reflexão crítica conseqüente. No extremo, assume atitudes de "martírio", de "cruzada", de "apologética", na defesa da "fé". Coitado - não percebe que aí a fé é o maior dos exemplos de ignorância crônica...
6. A fé-enquanto-encontro constitui, ao contrário da fé-enquanto-ensino, que é fundamentalmente política, uma atitude estética. O homem e a mulher tomados por essa atitude foram atingidos/deixaram-se atingir por uma abertura estética em face da "realidade", ultrapassando-a, de forma intuitiva, hermenêutica, "mística", ultrapassando a linha imaginária do limite físico da matéria, e transportando para esse mistério estético todas as angústias, sejam angústicas existenciais, sejam angústias civilizatórias. Acima de tudo, não se trata de uma experiência de conteúdo - ela nem parte de conteúdos dados, nem chega a quaisquer conteúdos. Ela é tão somente uma experiência de mistério que deve permanecer mistério, uma abertura para a inefabilidade que deve permanecer inefável.
7. A fé-enquanto-encontro, sendo estética, cnquanto mística, é, a rigor, o encontro do sujeito consigo mesmo por meio do "espelho" da transcendência mítica postulada e experimentada hermenuticamente. Nem o limite é dado, é postulado, nem a realidade última, mítica, é dada, é, igualmente, postulada, e, enquanto postulação mítica/mística, serve de ricochete para a auto-contemplação do eu místico. Ela é o desdobramento arquetípico da solidão por meio da mimese do(s) "Outro(s)/Alguma Coisa". Tudo, aí, absolutamente tudo, é "pura" experiência, mediada culturalmente, seja em seus contornos plasmáticos, cenográficos, seja em seus conteúdos pontuais.
8. Dizer que essa fé não constitui uma experiênca de conteúdo é dizer que ela não pode ser teísta, porque o teísmo é doutrina, especulação filosófica humana. Nem panteísta, nem deísta, nem ateísta, ´nem anímica, nem nada que o valha, porque tudo isso são conteúdos humanos, logo, políticas comunitárias, conteúdos engendrados na história de povos, como o sabe, insofismavelmente, a Fenomelogia da Religião. Logo, nenhuma doutrina, de nenhuma espécie, de nenhum povo, de nenhuma época, de ninguém, é-lhe tributária, conquanto, a seu tempo e modo, todas o sejam.
9. Nenhuma fé-doutrina, nenhuma fé-enquanto-ensino é o mesmo ou tem parentesco privilegiado com a mística da fé-enquanto-encontro. Daqui não se chega necessariamente a nenhuma fé-enquanto-ensino em particular, conquanto se compreenda por que e como se chega a todas. A fé (doutrina) de um povo, de uma gente, de uma comunidade, são invenções dessa gente, eventualmente de algum poder aí concentrado, invenção essa que usurpa - é o termo - a experiência aberta e inexprimível da estética mística subjetiva. Não, ela não substitui, ela castra, adestra, atacanha, empobrece, aprisiona, atrofia, mata, a estética da experiência hermenêutica da abertura ao mistério - filho da consciência humana, sua outra metade. Nisso, a doutrina é assassina, conquanto, por outro lado, também ela, um impulso antropológico.
10. Eu aprendi a me relacionar de modo adulto e maduro com essa fé-doutrina, sempre menor do que eu, menor do que nós: nada que ela me diz me encanta, me enfeitiça - mais. Sei quem ela é, como a criança que, um dia, flagra o pai a pôr presente sob a árvore, e o Papai Noel se despede, lentamente, naturalmente, sem dores maiores, para sempre. A fé-doutrina é o mito que não quer ir embora, que quer ficar - e fica. Não mais comigo.
11. Fica na minha experiência a fé-enquanto-encontro, que, insisto, é experiência estética de abertura para o mistério sem nome, e que sem nome fica, sem nome, sem figura, sem conteúdo, meramente abertura estética. Essa fé é doce e natural. Ela pulsa em cada batida do músculo cardíaco, ao ritmo do balanço da cadeira na varanda...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Exceto no que diz respeito às quatro classificações do termo "fé": fé-enquanto-encontro, fé-enquanto-ensino, fé-enquanto-encanto e fé-enquanto-entrega. Ainda penso que essa foi uma "sacada" muito boa - modéstia à parte. Penso mais: que ela se preste, realmente, à classificação dos conteúdos comuns a que costumamos nos remeter quando usamos a palavra "fé".
3. Chamamos de fé muitas atitudes que são, a rigor, diferentes entre si. A mística do mistério, por exemplo, já não é mais a crença em dogmas ou doutrinas - e, todavia, fé é o termo que usamos para as duas atitudes. Além disso, a "oração", em última análise, magia, é um exemplo de fé-enquanto-encanto, de resto, totalmente diferente, até relativamente contrária, à sua companheira, a fé-enquanto-entrega, que, por força de seu espírito de otismismo, prescinde, mesmo, de orações - e, contudo, ambas são tratadas como atitudes de fé: a fé que, acredita, será atendida, enquanto a fé que, acredita, nem precisa pedir...
4. Penso que essa confusão de atitudes (mística, dogmática, magia e otimismo), todas elas reunidas sob a mesma rubrica - fé -, seja a causa de enormes problemas no ensino teológico, mormente o nosso, brasileiro, cuja base constitui-se de tradição, doutrina e normas denominacionais.
5. No campo do ensino teológico, propriamente dito, o conflito se estabelece em torno da confusão infernal entre fé (mística) e fé (doutrina). O estudante confunde mística e crença dogmática, e, assim, torna-se imprestável à reflexão crítica conseqüente. No extremo, assume atitudes de "martírio", de "cruzada", de "apologética", na defesa da "fé". Coitado - não percebe que aí a fé é o maior dos exemplos de ignorância crônica...
6. A fé-enquanto-encontro constitui, ao contrário da fé-enquanto-ensino, que é fundamentalmente política, uma atitude estética. O homem e a mulher tomados por essa atitude foram atingidos/deixaram-se atingir por uma abertura estética em face da "realidade", ultrapassando-a, de forma intuitiva, hermenêutica, "mística", ultrapassando a linha imaginária do limite físico da matéria, e transportando para esse mistério estético todas as angústias, sejam angústicas existenciais, sejam angústias civilizatórias. Acima de tudo, não se trata de uma experiência de conteúdo - ela nem parte de conteúdos dados, nem chega a quaisquer conteúdos. Ela é tão somente uma experiência de mistério que deve permanecer mistério, uma abertura para a inefabilidade que deve permanecer inefável.
7. A fé-enquanto-encontro, sendo estética, cnquanto mística, é, a rigor, o encontro do sujeito consigo mesmo por meio do "espelho" da transcendência mítica postulada e experimentada hermenuticamente. Nem o limite é dado, é postulado, nem a realidade última, mítica, é dada, é, igualmente, postulada, e, enquanto postulação mítica/mística, serve de ricochete para a auto-contemplação do eu místico. Ela é o desdobramento arquetípico da solidão por meio da mimese do(s) "Outro(s)/Alguma Coisa". Tudo, aí, absolutamente tudo, é "pura" experiência, mediada culturalmente, seja em seus contornos plasmáticos, cenográficos, seja em seus conteúdos pontuais.
8. Dizer que essa fé não constitui uma experiênca de conteúdo é dizer que ela não pode ser teísta, porque o teísmo é doutrina, especulação filosófica humana. Nem panteísta, nem deísta, nem ateísta, ´nem anímica, nem nada que o valha, porque tudo isso são conteúdos humanos, logo, políticas comunitárias, conteúdos engendrados na história de povos, como o sabe, insofismavelmente, a Fenomelogia da Religião. Logo, nenhuma doutrina, de nenhuma espécie, de nenhum povo, de nenhuma época, de ninguém, é-lhe tributária, conquanto, a seu tempo e modo, todas o sejam.
9. Nenhuma fé-doutrina, nenhuma fé-enquanto-ensino é o mesmo ou tem parentesco privilegiado com a mística da fé-enquanto-encontro. Daqui não se chega necessariamente a nenhuma fé-enquanto-ensino em particular, conquanto se compreenda por que e como se chega a todas. A fé (doutrina) de um povo, de uma gente, de uma comunidade, são invenções dessa gente, eventualmente de algum poder aí concentrado, invenção essa que usurpa - é o termo - a experiência aberta e inexprimível da estética mística subjetiva. Não, ela não substitui, ela castra, adestra, atacanha, empobrece, aprisiona, atrofia, mata, a estética da experiência hermenêutica da abertura ao mistério - filho da consciência humana, sua outra metade. Nisso, a doutrina é assassina, conquanto, por outro lado, também ela, um impulso antropológico.
10. Eu aprendi a me relacionar de modo adulto e maduro com essa fé-doutrina, sempre menor do que eu, menor do que nós: nada que ela me diz me encanta, me enfeitiça - mais. Sei quem ela é, como a criança que, um dia, flagra o pai a pôr presente sob a árvore, e o Papai Noel se despede, lentamente, naturalmente, sem dores maiores, para sempre. A fé-doutrina é o mito que não quer ir embora, que quer ficar - e fica. Não mais comigo.
11. Fica na minha experiência a fé-enquanto-encontro, que, insisto, é experiência estética de abertura para o mistério sem nome, e que sem nome fica, sem nome, sem figura, sem conteúdo, meramente abertura estética. Essa fé é doce e natural. Ela pulsa em cada batida do músculo cardíaco, ao ritmo do balanço da cadeira na varanda...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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