sábado, 14 de março de 2009

(2009/085) A bordo da metáfora da arca


1. Num e-mail em que me permiti algum desabafo, meu amigo e pastor Valdir Stephanini Stephanini, aproveitando-se de que usei a metáfora do "barquinho na tempestade", retrucou-me com a metáfora mais grandiloqüente da "arca", a dizer-me que, cá como lá, o dilúvio acaba, o sol volta, a luz irradia, o passeio pelas montanhas se permite. Para além do conforto pastoral que essas palavras postulam produzir, bateram-me tangencialmente outras questões, como que trazidas pelas ondas...

2. Permito-me pôr em suspenso todas as questões histórico-sociais e exegéticas que envolvem as narrativas do dilúvio. Tomo, apenas, a narrativa em si. Vejo, aí, um Noé tomado desde o centro de sua existência, por uma tempestade sem precedentes, um maremoto inigualável, uma tsunami incomensurável, um dilúvio de Deus. Tudo o mais torna-ser o quê? Invisível. A dimensão da catástrofe é tal que tudo o mais desontologiza-se, perde a materialialidade, logo, a relevância, quase a existência, decerto, o nome.

3. E, no entanto... Há bocas a alimentar: e quantas! É dar de comer ao galo, ao crocodilo, ao cão, à pantera. É dar de beber ao pintassilgo, ao anu, à andorinha. É um limpar interminável de fezes de elefante, de camelo, de anta, de boi, muitos de cujos paquidermes mal esperam a última pá e já soltam mais e mais trabalho. É um varrer, um lavar, um alimentar, um abeberar, um cuidar, um vigiar, um fazer, um desfazer, um olhar, um atentar, um cozer, um descascar, um dejetar... Isso tudo enquanto, sobre sua cabeça, despeja-se um dilúvio.

4. Terrível fato na tragédia, é que as pequenas coisas da vida permanecem demandando nossa atenção: uma criança que chora, um cão faminto, um amigo ao telefone, um encontro profissional, uma agenda inoportuna, um vizinho cotidiano. E você tem de, na prática, fingir que esse é mais um dia, como qualquer outro, conquanto, por dentro, você esteja arrasado, esmagado pelo peso do dilúvio.

5. Você queria que o mundo parasse até que o seu dilúvio passasse. Mas ele não pára. Pelo contrário: seu dilívio é como um ímã, a atrair uma interminável fila de afazeres que, no contexto, assumem a proporção de picadas de inseto, incômodos, desconfortos, uma correição de contínuas e mínimas dores, que, a despeito de pequenas, no conjunto, infernizam ainda mais a sua tragédia pessoal.

6. Arca, Noé... e todos os animais do planeta. Sua dor, Noé, sua tragédia, é sua. E mais toda essa multidão de coisas a fazer, a despeito dela.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

João Oliveira Ramos Neto disse...

Pintassilgo????? Tem certeza que esse animal entrou na Arca??? Isso é um animal????? rs... Nem precisava assinar o texto. Coisa assim só podia ser do Osvaldo, sempre de bom humor!

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