segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

(2008/92) Dos reducionismos epistemológicos


1. À luz (de dois) dos princípios da complexidade, parece correto o juízo de que o segundo Heidegger e Gadamer caíram na vala comum do reducionismo pendular, operando epistemologicamente no regime da simplicidade atrofiante.

2. O primeiro é o "princípio sistêmico ou arganizacional" - opondo-se à idéia reducionista, afirma o que desde Pascal já se sabia: o todo é maior do que a soma das partes, mas, agora se acrescenta (Edgar Morin), é, também, menor do que ela. A organização do todo faz surgir as emergências sistêmicas, propriedades novas que as partes, isoladas, não possuem. Por outro lado, a organização do todo inibe, também, propriedades que as partes têm enquanto isoladas. Assim, o todo é - sempre - ao mesmo tempo maior e menor do que a soma das partes. Enquanto sujeito humano, na minha humanidade, inserido na tradição e na cultura, no jogo social, sou, ao mesmo tempo, mais e menos do que eu mesmo - menos, por exemplo, na inibição necessária de minha liberdade...

3. O segundo é o "princípio do ciclo retroativo" - segundo o qual o causa é afetada pelo efeito. O princípio linear, simples, afirma que o efeito é afetado pela causa. Segundo a complexidade, sim, isso ainda é verdade, mas, apenas, uma parte dela, que, no entanto, sozianha, é inverdade. Também o efeito retroage sobre a causa, de modo que o sistema complexo constitui-se pela retroatividade, pelo feedback, pela recursividade da causa sobre o efeito e do efeito sobre a causa, um como causa e ao mesmo tempo efeito do outro. A Linguagem e a Tradição constituem tanto causa quanto efeito em relação à "humanidade" - aos homens e às mulheres concretos e históricos - que as engendra e por elas é engendrada: qualquer tentativa de lidar com qualquer dos termos de modo sobredeterminante constitui operação do modelo epistemológico reducionista e atrofiante - por exemplo, Existencialismo e Estruturalismo.

4. Qualquer pensamento que fuja desses princípios, e há outros ("hologramático", "da auto-produção", "da auto-eco-organização", "dialógico", "do conhecimento aberto"), opera fora do regime da complexidade, e tende a reduzir os fenômenos a um de seus aspectos, eventualmente, não necessariamente, verdadeiros, mas verddeiros, apenas, quando articulados com seus contrários dialógicos, e, todavia, falsos, se tratados isoladamente.

5. Ora, o segundo Heidegger passou a trabalhar com o conceito forte de Linguagem. Depois de ter passado pelo Dasein, pelo Homo hermeneuticus em sua singularidade, sua auto-construção - ao estilo do Übermensch (quer dizer, conforme eu o vejo), o homem-aí, o homem-em-superação-constante-de-si-mesmo, Heidegger, como se, de repente tivesse sido tomado por um arrependimento, uma nostalgia de Deus, sem poder a Deus retornar, reintroduz o princípio platônico da contingencialidade do "homem" em relação à Idéia, do Homo, como espécie, à Linguagem. O mesmo, na seqüência, fez Gadamer, dessa vez, por meio da noção de Tradição. Como Deus, na "história dos efeitos" de Gn 1,1-2,4a (a meu ver, não é disso, nesses termos, que trata a passagem), criou a "humanidade" (a rigor, ali, o rei de Judá), a Linguagem (Heidegger) e a Tradição (Gadamer), os "novos deuses" (cada geração tem o deus que merece), criaram o novo não-mais homem, um ponto inerte e inerme em face do Ser...).

6. Ora, seja a Linguagem, seja a Tradição, constituem, quando muito, partes do sistema humano (eco-sócio-antropo-psico-noológico), com suas participações e interferências verdadeiras, recursivas. Mas nem uma nem a outra existem sem os homens - fora da humanidade, ironia!, não há nem Linguagem nem Tradição... Sejam os homens, seja a Linguagem, seja a Tradição, são partes de um todo, recursivo, sempre. Eis o que Edgar Morin escreve, falando sobre o "princípio do ciclo recorrente": "os indivíduos humanos produzem a humanidade de dentro e por meio de suas interações, mas a sociedade emergindo, produz a humanidade desses indivíduos, fornecendo-lhes a linguagem e a cultura" (Edgar MORIN, A Necessidade de um Pensamento Complexo, em Candido MENDES, Representação e Complexidade, p. 73).

7. Heidegger, o tardio, e Gadamer, arrisco dizer - ao menos naquilo que se tornou o marco característico da "história dos (seus) efeitos": Linguagem e Tradição - caíram na vala comum do reducionismo pendular, que, mais uma vez, Morin descreve de modo muito claro: "quando consideramos a espécie ou a sociedade, o indivíduo desaparece, quando consideramos o indivíduo, a espécie e a sociedade desaparecem. O pensamento complexo aceita dialogicamente os dois termos, que tendem a se excluir um do outro" (Idem, p. 74-75). Heidegger, o segundo, e Gadarmer, ao menos aqueles a que se recorre mais fartamente (mas, eventualmente, o problema está na "história dos efeitos", nesse caso, dos defeitos), focaram os olhos num dos termos - a sociedade enquanto suas expressões práxico-noológicas (Linguagem e Tradição). Mas, com isso, matam a humanidade...

8. Se Edgar Morin estiver correto, Heidegger e Gadamer pensam anacronicamente - sob o regime da simplificação e da redução. Se tal juízo procede, cometem os mesmos equívos todos aqueles que, partindo do Heidegger da Linguagem e do Gadamer da Tradição sustentam a mesma ideologia, seja por receio de hiper-objetivação (positivismo [igual ao medo dos cariocas de não saírem de casa or medo da violência...]), seja por "herança" da formação (Homo habitus), seja por convencimento pessoal da procedência das teses, seja por interesse nas suas conseqüências políticas. É preciso superar Heidegger e Gadamer, não, obviamente, desconsiderando qualquer papel da Linguagem e da Tradição, mas convertendo os termos em suas expressões sistêmicas, "linguagem" e "tradição", co-constituintes - ao lado dos indivíduos, sujeitos históricos (impressionante como a TdL quis nomear os pobres como "sujeitos históricos", recorrendo a Gadamer... É justo, se "os pobres" forem despersonalizados e transformados em "estrutura" Lingüística ou Traditiva... E mais: como assim, Tradição, se os "pobres" devem subvertê-la? [cf. o post anterior, sobre olítica e jornalismo...]). Há um problema epistemológico grave aí.

9. Alternativamente, à luz dos princípios da complexidade, convém não inibir a efetivação do espírito crítico subjetivo humano, seja a favor da tradição, seja contra a Tradição, seja servindo-se da linguagem, seja servindo a ela. Há momentos de desequilíbrio: agora, o sujeito sobredetermina-se à tradição - revolução! Agora, a tradição impera - acomodação! Isso, precisamente isso é o jogo da cultura, o jogo que joga o Homo sapiens desde que inventou-se, inventando a linguagem e a tradição, inventado por elas, e, por meio delas, inventando-se incessantemente... Contra o Übermensch, Linguagem e Tradição! Resta ver onde, de fato, esconde-se, sub-reptício, um espírito potencialmente nazista... Pergunte-se a Lévinas, que ele sabe...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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