1. Há alguns anos atrás, uns vinte, dezenove, talvez, eu não me surpreenderia com o predicativo - hoje, contudo, bateu-me a pele como fogo: "A teologia (...) subsiste sobre princípios perenes". Tal citado, de que abaixo se dá a paternidade, soa ainda mais agudo quando se está informado de que se encontra em relação adversativa com outro tema, anteriormente apresentado:
1.1 "Poder-se-ia definir precisamente a cultura como sendo um resultado direto da liberdade. A ciência vive na experiência. Nasce, desenvolve-se, progride ou morre. Sem culpa e sem ofensa ao processo de unidade.
1.2 A teologia, como a religião não! Ela subsiste sobre princípios perenes. Tem a pretensão de orientar indistintamente os caminhos para o desenvolvimento e para o progresso".
2. A teologia distinguiu-se não apenas da ciência, compreensível!, mas, até, da cultura! Porque ela, a teologia, é/subsiste sobre princípios perene(s)... Aliás, a teologia e a religião!, se atentar-se bem para a relação adversativa entre o citado 1.1 e o citado 1.2, no texto original, em idêntica seqüência e relação. Tanto que, logo após, lê-se (não sem estupefação): "a religião (...) tem na teologia sua expressão científica". E, contudo, sabe-se que "aqui surge um choque bastante difuso entre a religião e a ciência". Ou seja, de um lado, teologia e religião, a face científica desta, e, do outro, cultura e ciência. Há um choque, afirma-se - e há mesmo! - entre ciência e religião, todavia, nada que, a rigor (estou sendo irônico) afete a cientificidade da religião, já que a teologia, ou seja, sua racionalidade particular, confere-lhe tal aura. Ainda que a teologia e a ciência não freqüentem a mesma sala - o mesmo mundo!
3. Sabe-se, aí, contudo, que "a teologia, carece de fundamentos mais do que a ciência, pois a ciência pode começar a seu pensamento com uma pré-suposição critica, o teólogo não". Naturalmente, porque o teólogo não pode pensar para além da perenidade que lhe cega qual luz à rã (cacei muitas na infância, e, quem sabe?, daí aprendi que excesso de luz cega...). O teólogo está dentro do bolso de Platão, e, diáfano, deixa passar através de si a "verdade perene". Quer-me parecer que esse discurso faria sentido há trezentos anos - mas hoje... Bem, há quem tenha, hoje, trezentos anos...
4. Louva-se, constrangidamente, uma saída: a pós-modernidade. E por quê? Pela mesma razão que Nicodemus a louvará em seu atentado contra o método histórico-crítico: onde não há fundamentos, que se pegue aquele da Tradição (vês Haroldo, como a serpente é mais astuta do que sói parecer aos abertos de coração...?)! Eis o citado: "a pós-modernidade trouxe o debate [sic] temos uma nova chance ao discurso teológico, principalmente na superação da pretensa exatidão da ciência. É uma conciliação pelo esvaziamento dos processos cognoscitivos próprios da pós-modernidade, mas é uma abertura de qualquer modo". Ou seja, se não se pode competir com ela, destruam-se seus fundamentos, e afirmemos que a falta de fundamento é a essência dos discursos (Rorty, Habermas, Gadamer, Vattimo - alguma coisa entre cinismo e Tradição, com nuances de todo tipo e grau).
5. O teólogo, contudo, há de brincar de pós-modernidade para fora, com os de fora. Para dentro, com os de dentro, ah!, aí necessita-se de chão firme, porque a política não se faz na fumaça. Não? Que significa, então, o citado: "convém por isso olhar que tipo de fundamento interessa a teologia se ele é igual ao fundamento de todas as outras ciências. Uma parte da resposta já parece ser elaborada a priori: o fundamento é o fundamento!"? Um doce para quem adivinhar do que se trata. Uma dica - ninguém é mais louvado no texto do que o Kant da Crítica da Razão Prática! Bem, sem rodeios: "o que se afirma então é que não podemos, contrariando a ciência que busca seu objeto no sensível, procurarmos Deus no supra-sensível, mas na razão humana. Deus torna-se assim a unidade de ação. Sem essa unidade não haveria o bem, cada um poderia viver da sua individualidade ética". Deus do céu, quanto malabarismo para não sair do lugar! E com um agravante: tendo diante de si (será?) a ciência... Haroldo há de, de novo, achar-me chato, indelicado, intolerante, e daí pra mais, e, talvez, mais uma vez, queira recorrer ao Übermensch. Mas, Haroldo, talvez fosse mais produtivo diagnosticarmos que "mal" é esse que acomete a teologia, esse de não admitir, nem para si mesmo (será?) que se brinca de nada com coisa nenhuma...
5.1 "De Aristóteles a Kant a idéia de Deus permaneceu. Deus postulado é um princípio de unidade das ações humanas. Com Kant o princípio ou unidade está infiltrado no interior da razão humana. // O fundamento da teologia, enquanto resposta às críticas da ciência é um postulado, é bem verdade, entretanto, para o homem é um postular que se alcança através da coerência e se verifica na prática efetiva da vida".
6. É curioso como se pretende falar em nome da Teologia. Revela-se nesse discurso não apenas o acordo platônico entre teologia e "revelação", mas, pior do que esse anacronismo, a percepção que tem o teólogo de si como um novo Platão, como alguém que é clarividente, que sabe, que pode falar da Teologia como uma coisa dada, acabada, pronta - ah, sim, a "teologia é perene"...
7. Eu dizia: para os de dentro... Sim, por que, quem de fora daria crédito a um argumento como o seguinte: "o falar da teologia diz de uma existência que escapa do domínio de razão suficiente. Mas isso, longe de ser uma degradação para a teologia a coloca no cominho de uma verdadeira ciência, aquela que trata do fundamento, pois, para ser um verdadeiro fundamento ele deve escapar da relação causa e efeito. Com o tema de Deus a teologia pretende chegar a um fundamento fora do ente. Um fundamento que não é retirado da experiência na maneira real do ser, mas um fundamento em sua própria maneira de ser"? Essa teologia, que se diz perene, põe seu mundo, seu fundamento, sua razão, suas regras - é mais ciência do que todas juntas (extraordinária prestidigitação retórica!). Para se dar crédito a ela, tem-se, primeiro, que passar a cabeça pelo seu moedor de carne, porque o cérebro natural tem dificuldades de compreender como o fundamento de uma coisa pode ser aquilo que essa coisa inventa (Feuerbach). É o paroxismo de Descartes! Creio, logo basta. Basta, não - se eu creio, é assim que é. Se a moda pega...
8. Cá entre nós, uma vez que tal raciocínio aproxima-se bastante daquele tipo de reflexão que se fazia antes do surgimento das modernas regras de racionalidade crítica, epistemologia, compatibilidade transdisciplinar, não me surpreendem as transformações por que passou a Europa, culminando na secularização e na emancipação da cultura em face da "Teologia Perene". Qualquer pessoa com o mínimo de espírito crítico e autonomia não suporta um ambiente assim por mais de três minutos, sob risco de asfixia e lobotomia irreversível...
9. Quanto a mim, perene é tudo o que a teologia não é: nasceu, transformou-se e há de morrer (amém!), para que renasça, melhor, transformada por si mesma, em diálogo com seu tempo e mundo - que, seja registrado, não pode (mais) ser o de Platão. Nunca mais.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. para consulta ao texto criticado, cf. Lindomar Rocha Mota, Teologia e Ciência: histórico de uma superação (disponível aqui e consultado hoje)
2. A teologia distinguiu-se não apenas da ciência, compreensível!, mas, até, da cultura! Porque ela, a teologia, é/subsiste sobre princípios perene(s)... Aliás, a teologia e a religião!, se atentar-se bem para a relação adversativa entre o citado 1.1 e o citado 1.2, no texto original, em idêntica seqüência e relação. Tanto que, logo após, lê-se (não sem estupefação): "a religião (...) tem na teologia sua expressão científica". E, contudo, sabe-se que "aqui surge um choque bastante difuso entre a religião e a ciência". Ou seja, de um lado, teologia e religião, a face científica desta, e, do outro, cultura e ciência. Há um choque, afirma-se - e há mesmo! - entre ciência e religião, todavia, nada que, a rigor (estou sendo irônico) afete a cientificidade da religião, já que a teologia, ou seja, sua racionalidade particular, confere-lhe tal aura. Ainda que a teologia e a ciência não freqüentem a mesma sala - o mesmo mundo!
3. Sabe-se, aí, contudo, que "a teologia, carece de fundamentos mais do que a ciência, pois a ciência pode começar a seu pensamento com uma pré-suposição critica, o teólogo não". Naturalmente, porque o teólogo não pode pensar para além da perenidade que lhe cega qual luz à rã (cacei muitas na infância, e, quem sabe?, daí aprendi que excesso de luz cega...). O teólogo está dentro do bolso de Platão, e, diáfano, deixa passar através de si a "verdade perene". Quer-me parecer que esse discurso faria sentido há trezentos anos - mas hoje... Bem, há quem tenha, hoje, trezentos anos...
4. Louva-se, constrangidamente, uma saída: a pós-modernidade. E por quê? Pela mesma razão que Nicodemus a louvará em seu atentado contra o método histórico-crítico: onde não há fundamentos, que se pegue aquele da Tradição (vês Haroldo, como a serpente é mais astuta do que sói parecer aos abertos de coração...?)! Eis o citado: "a pós-modernidade trouxe o debate [sic] temos uma nova chance ao discurso teológico, principalmente na superação da pretensa exatidão da ciência. É uma conciliação pelo esvaziamento dos processos cognoscitivos próprios da pós-modernidade, mas é uma abertura de qualquer modo". Ou seja, se não se pode competir com ela, destruam-se seus fundamentos, e afirmemos que a falta de fundamento é a essência dos discursos (Rorty, Habermas, Gadamer, Vattimo - alguma coisa entre cinismo e Tradição, com nuances de todo tipo e grau).
5. O teólogo, contudo, há de brincar de pós-modernidade para fora, com os de fora. Para dentro, com os de dentro, ah!, aí necessita-se de chão firme, porque a política não se faz na fumaça. Não? Que significa, então, o citado: "convém por isso olhar que tipo de fundamento interessa a teologia se ele é igual ao fundamento de todas as outras ciências. Uma parte da resposta já parece ser elaborada a priori: o fundamento é o fundamento!"? Um doce para quem adivinhar do que se trata. Uma dica - ninguém é mais louvado no texto do que o Kant da Crítica da Razão Prática! Bem, sem rodeios: "o que se afirma então é que não podemos, contrariando a ciência que busca seu objeto no sensível, procurarmos Deus no supra-sensível, mas na razão humana. Deus torna-se assim a unidade de ação. Sem essa unidade não haveria o bem, cada um poderia viver da sua individualidade ética". Deus do céu, quanto malabarismo para não sair do lugar! E com um agravante: tendo diante de si (será?) a ciência... Haroldo há de, de novo, achar-me chato, indelicado, intolerante, e daí pra mais, e, talvez, mais uma vez, queira recorrer ao Übermensch. Mas, Haroldo, talvez fosse mais produtivo diagnosticarmos que "mal" é esse que acomete a teologia, esse de não admitir, nem para si mesmo (será?) que se brinca de nada com coisa nenhuma...
5.1 "De Aristóteles a Kant a idéia de Deus permaneceu. Deus postulado é um princípio de unidade das ações humanas. Com Kant o princípio ou unidade está infiltrado no interior da razão humana. // O fundamento da teologia, enquanto resposta às críticas da ciência é um postulado, é bem verdade, entretanto, para o homem é um postular que se alcança através da coerência e se verifica na prática efetiva da vida".
6. É curioso como se pretende falar em nome da Teologia. Revela-se nesse discurso não apenas o acordo platônico entre teologia e "revelação", mas, pior do que esse anacronismo, a percepção que tem o teólogo de si como um novo Platão, como alguém que é clarividente, que sabe, que pode falar da Teologia como uma coisa dada, acabada, pronta - ah, sim, a "teologia é perene"...
7. Eu dizia: para os de dentro... Sim, por que, quem de fora daria crédito a um argumento como o seguinte: "o falar da teologia diz de uma existência que escapa do domínio de razão suficiente. Mas isso, longe de ser uma degradação para a teologia a coloca no cominho de uma verdadeira ciência, aquela que trata do fundamento, pois, para ser um verdadeiro fundamento ele deve escapar da relação causa e efeito. Com o tema de Deus a teologia pretende chegar a um fundamento fora do ente. Um fundamento que não é retirado da experiência na maneira real do ser, mas um fundamento em sua própria maneira de ser"? Essa teologia, que se diz perene, põe seu mundo, seu fundamento, sua razão, suas regras - é mais ciência do que todas juntas (extraordinária prestidigitação retórica!). Para se dar crédito a ela, tem-se, primeiro, que passar a cabeça pelo seu moedor de carne, porque o cérebro natural tem dificuldades de compreender como o fundamento de uma coisa pode ser aquilo que essa coisa inventa (Feuerbach). É o paroxismo de Descartes! Creio, logo basta. Basta, não - se eu creio, é assim que é. Se a moda pega...
8. Cá entre nós, uma vez que tal raciocínio aproxima-se bastante daquele tipo de reflexão que se fazia antes do surgimento das modernas regras de racionalidade crítica, epistemologia, compatibilidade transdisciplinar, não me surpreendem as transformações por que passou a Europa, culminando na secularização e na emancipação da cultura em face da "Teologia Perene". Qualquer pessoa com o mínimo de espírito crítico e autonomia não suporta um ambiente assim por mais de três minutos, sob risco de asfixia e lobotomia irreversível...
9. Quanto a mim, perene é tudo o que a teologia não é: nasceu, transformou-se e há de morrer (amém!), para que renasça, melhor, transformada por si mesma, em diálogo com seu tempo e mundo - que, seja registrado, não pode (mais) ser o de Platão. Nunca mais.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. para consulta ao texto criticado, cf. Lindomar Rocha Mota, Teologia e Ciência: histórico de uma superação (disponível aqui e consultado hoje)
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