quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

(2008/84) Meu Übermensch de Nieztsche


1. Jimmy e eu já discutimos uma ou duas vezes sobre o significado do termo Übermensch tal qual ele era usado por Nietzsche. Como Jimmy gosta(va) - gosta, ainda? - de falar, de meu lado, eu, "falando de coisas da minha cabeça", enquanto ele, recorrendo a um amigo, cujo nome me falta agora, especialista em Nietzsche. Jimmy, ajude-me, eventualmente, corrija-me, Jimmy, via esse seu amigo, manejava o termo no sentido "clássico" - o super-homem, o homem acima dos homens, o homem extraordinário. Minha opinião, contudo, era, e ainda é, conquanto, sujeite-se às provas indiciárias, sempre (Domenico Losurdo, historiador, "teria acabado" de desmontar a recepção de Nietzsche na filosofia do século XX, com o que ele deixaria cabalmente demonstrado que a "história dos efeitos" pode constituir-se [quase sempre o constitui] na história da aproriação indébita), inteiramente diferente.

2. Antes, um comentário sobre a "relação" entre Nietzsche e nazismo. Reporto o leitor à leitura da seção "Uma Filosofia Confiscada", em F. W. Nietzsche, Obras Incompletas, 1987, p. xv-xvi (Os Pensadores):


2.1 "Apoiado na crítica nietzscheana aos valores da moral cristã, em sua teoria da vontade de potência e no seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se passou a ver no autor de Assim Falou Zaratustra um precursor do nazismo. A principal responsável por essa deformação foi sua irmã Elisabeth, que ao assegurar a difusão do seu pensamento, organizando o Nietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth, depois do suicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e racunhos do irmão, fazendo publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa das obras de Nietzsche, retendo, até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta obra constitui uma interpretação, feita por Nietzsche, de sua própria filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o racismo germânicos. Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra franco-prussiana (1870-1871).

2.2 (...) Para compreender corretamente as idéias políticas de Nietzsche é necessário, portanto, purificá-lo de todos os desvios posteriores que foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um antidemocrático e um antitotalitário"
, como bem ilustra o título do trabalho de Losurdo, Nietzsche, il ribelle aristocratico: biografia intellettuale e bilancio critico. Na hipótese de as informações serem exatas, sejam as de Os Pensadores, sejam, a se confirmar, as de Losurdo, parece-me encerrada a questão de uma pretensa parternidade nietzscheana do nazismo: "por lo demás, el autor italiano mantiene a Nietzsche a distancia del III Reich y rechaza como anacrónicos los intentos de amalgamar uno y otro"
(Luis Alejandro Rossi, Político, no metafísico, disponível em http://www.institucional.us.es/araucaria/nro14/rese14_1.htm - importante: recomendado pelo próprio Losurdo [http://domenicolosurdomaterialinietzsche.blogspot.com/]). Eventualmente, são "versões" políticas - uma, querendo um Nietzsche nazista, outra, desquerendo tal coisa. Cremos em pesquisa? Investigue-se. Não cremos - retórica política!, não vale a pena... Quanto a mim, creio.

3. Eventualmente, Haroldo e Jimmy, estou enganado. É natural que esteja, se estiver, porque a ousadia paga sempre preço alto, e, conquanto não seja (contra o que diz Haroldo) um "senhor livre de tudo e de todos", sou, sim, muito, muito audacioso. Convido-os a uma paciência, ainda: ler, comigo, um dos trechos mais sensacionais da História da Literatura (e da Filosofia), um trecho da seção 4 de "O Prólogo de Zaratustra":

3.1
"O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre um abismo. // É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. // O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso" (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, 6 ed., Bertrand, 1989, p. 31 - não endosso a tradução super-homem, cf. abaixo).

4. Notoriamente, não falo como especialista em Nietzsche. Proponho, apenas, rigor sintático. Vamos lá. O homem, o que é? Ele é uma corda. O homem situa-se entre o animal e o super-homem. Enquanto corda sobre o abismo, o homem está, sempre lá. O risco é desejar sair de lá - voltar, parar, olhar para trás, mas, igualmente, o perigo de estar a caminho. E a caminho de quê? Do Übermench. Mas, alto lá: o que há de grande nesse homem é ser ponte, não meta, de modo que o Übermensch nao é uma meta. O valor, desse homem-corda sobre o abismo - assim é o homem, o abismo o define - é ser transição. Logo, ocaso. Mas é transitar e chegar? O homem deixará, então, o abismo? Mas, devagar!, o homem é uma corda, e uma corda sobre o abismo, sem poder parar, sem poder voltar, sem poder avançar: ele é isso.

5. Como conciliar esse discurso de Nietzsche com ele mesmo? Eu penso que, aí, já estamos diante de elementos de complexidade, caso em que a lógica aristotélica - como Haroldo apontou em minha auto-definição - rui. O homem é transição. Não, ele não está em transição, como que para algum lugar. O homem é transição. Sendo transição, ele, sempre, ininterruptamente, está em ocaso - e aurora, renascendo, fênix, de sua própria morte. Numa palavra moderna: re-inventando-se. O que estas palavras fantásticas de Nietzsche significam, a meu ver, é que não há modelo, não há fôrma, não há arquétipo, não há "tipo" - o homem se faz a si mesmo na medida de sua autonomia. Sem projetos do céu:
"amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas sacrificam-se à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem" (Idem, p. 32). Ora, se essa declaração é lida contra aquelas primeiras, pode-se, equivocadamente então, eu diria, interpretar que Nietzsche esteja "pregando" uma terra ocupada por super-homens. A meu ver, não: a meu ver ele indica, apenas, que a terra é para ser ocupada por super-homens, isto é, no sentido daquela existência humana auto-determinante, em perpétua transição, em perpétua re-invenção, ponte, não meta.

6. Se há algo que Zaratustra prega, e prega, é essa novidade: não há modelos, nem mesmo inferno:
"eu sou um prenunciador do raio e uma pesada gota da nuvem; mas esse raio chama-se super-homem" (Idem, p. 33). Sem modelos, sem metas, sem norte, sem "céu", "é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante" (Idem, p. 34). E mais: "quero ensinar aos homens o sentido do seu ser: que é o super-homem, o raio que rebenta da negra nuvem chamada homem" (Idem, p. 37). Interpreto essa declaração na mesma esteira das primeiras: o super-homem é o homem em transição, em perpétua transição: "amo todos aqueles que são como pesadas gotas caindo, uma a uma, da negra nuvem que paira sobre os homens" (Idem, p. 33). Talvez essas gotas reverberem antigas mitologias de rebeldes recém-saídos do céu, em direção à terra, como quer a mitologia de Enoque, por exemplo. Seja como for, assim como "sagrado" e "profano" não podem ser separados, "homem" e "super-homem" são conceitos binários, duas estrelas binárias gravitando uma em torno da outra: o homem é transição, e enquanto transição - somente enquanto transição, por ser transição, durante a transição, e, se ela pára, pára tudo -, ele é Übermensch - processo, não lugar.

7. Para constituir-se enquanto transição, contudo, primeiro há que se fazer uma coisa - descontruir a masmorra:
"olhai-os, os crentes de todas as fés! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores, o destruidor, o criminoso; - mas esse é o criador" (Idem, p. 39). Criar, pois, é ato incontinenti à quebra das tábuas - de modo que "quero unir-me aos que criam, que colhem, que festejam; quero mostrar-lhes o arco-íris e todas as escadas do super-homem" (Idem, p. 40). É por isso que na seção "Os desprezadores do corpo", Zaratustra, dirigindo-se àqueles gestores dos deuses, desprezadores do corpo, posiciona-se: "não sigo o vosso caminho, ó desprezadores da vida! Não sois, para mim, ponte que leve ao super-homem!" (Idem, p. 52). Ora esse passo é de muitíssima importância, porque nos leva de volta ao Prólogo - o homem é ponte! (o que significa, em termos complexos, que o todo de Zaratustra constitui-se sobre a emergência do conjunto das partes, de modo que cada parte deve ser lida a partir do todo, e vice-versa), e o seu ser-ponte, aquela perpétua e ininterrupta transição, é a condição de Übermsnch - "ponte que leve ao super-homem!" (p. 52). Mas, cuidado, a pressa é inimiga da exegese, "o que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta" (p. 31), de modo que o homem é ponte somente se e enquanto é ponte e transição, e é ponte para o Übermench que, contudo, é sempre ocaso, e não meta. Processo, não lugar.

8. Há momentos, eu sei, em que ficamos desconsertados diante da poesia-filosofia de Nietzsche. Aí, é preciso ter a chave (será, amigos, meus bons amigos, que a chave que eu tenho foi fabricada pelo chaveiro, ou eu, ladrão, falsifiquei-a a meu bel prazer e más inclinações políticas?). Numa seção em que fica claro que Nietzsche não suprime as virtudes, apenas denuncia o falso fundamento teológico delas, pode-se ler:
"se tens sorte, meu irmão, possuirás uma única virtude e não mais do que uma: mais leve, assim, poderás transpor a ponte" (Idem, p. 53). Ai, errei tudo que dissera! Vendetta de meus amigos! Mas - será mesmo? Mais adiante, na mesma seção, lê-se: "o homem é algo que deve ser superado" (p. 54; cf. p. 64). Pois bem, ou a partir da página 53 Nietzsche mudou polarmente, pendularmente, sua forma de pensar e escrever, ou ainda estamos diante da mesma prédica, e somos nós que temos de preparar nossa taça para receber o vinho.

9. Como fechar a conta? Como o homem pode ser ponte que nunca deixa de ser ponte, ocaso e não meta, transição, heraclitiana mudança, e não parmenideana situação noética, e, ao mesmo tempo, deve ser encarado como algo a ser superado, e cogitar, ainda, da travessia da ponte? Ora, é simples, e basta que se volte, sempre, o tempo todo, para o Prólogo. O homem é a ponte - mas não pode parar. Se pára, acabou a transição - eis um não-homem, uma não-ponte. Logo, o homem é ponte, mas não pode parar de ser. Igualmente, não pode voltar. Se volta, torna-se animal (Haroldo mencionou o "darwinismo de Nietzsche, de resto, presente em toda Filosofia e Teologia do século XIX - de Hegel a Harnarck. O [risco de] equívoco, me parece, é conceber uma teleologia, uma utopia darwinista em Nietzsche - não, não há meta, Haroldo. Nos termos de Dawkins, trata-se da Escalada do Monte Improvável, nos de Prigogine, trata-se, intestinamente, de História - aberta, caso pairem dúvidas). Por outro lado, seguir em frente é perigoso. Mas, se é perigoso, que fazer? Parar, voltar, seguir?

10. Fecha-se a conta pela simples manutenção dos termos, sem suspensão de nenhum deles. O homem deve ser superado significa que ele não pode parar, nem voltar, nem seguir, como que a algum lugar pré-determinado - ele deve manter-se seguindo, sempre, ininterruptamente, porque ele, o homem, é ponte, e não meta, é transição, e não meta, é ocaso, e não meta, mas isso em perpétuo gerúndio, superando-se, sempre, sem nunca ter chegado ao fim da superação. O homem sempre tem de ser superado. Nunca há de chegar, porque não há onde chegar. Medo? Enfiar-se na caverna? Animal. Cansado, parar? Eis a entrega confortável aos "céus" (quanto a isso, nada como a seção "Dos Transmundos", p. 47-50, para a qual é necesário estômago forte, é necessário, já, ser ponte). Ah!, então o homem deve, ousadamente, avançar, tornar-se o nazista super-homem! Pelo amor de Deus - será tão simples? Tão pequeno? Tão igual àquilo a que Nietzsche se interpõe? O cristão é esse "modelo", e Nietzsche não quer um contra-cristão. Amigos, o que Nietzsche desconstrói não é o "homem certo", como se, em competição ontológica com o "Adão/Jesus", o novo e o velho homem, houvesse um Superman, pós-cristão. Não se trata, absolutamente, apostaria um braço nessa hipótese de leitura, disso - trata-se de algo muito mais avassalador, verdadeiro evangelho: a desconstrução da Idéia de modelo. Não há chegada, só ponte. E, se o homem cuida ter chegado, ainda que do outro lado, continua homem, porque chegou. Pior, muito pior - fez não-homem, porque cuidou ter chegado.

11. Um inimigo desse homem-sempre-em-transição, o Übermensch, é o Estado - vede bem, nos termos em que Nietzsche conhece e concebe o Estado!:
"onde o Estado cessa - olhai para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e as pontes do super-homem?" (Idem, p. 67). De um lado, o Estado, de outro, a Igreja - monstros (cf. Do Novo Ídolo, p. 65-67): "inventou-se o Estado! (...) 'Nada há na terra mais do que eu; eu sou o dedo ordenado de Deus' - assim urra o monstro" (p. 65). Já quanto à moral do "próximo" - referência ao Cristianismo na sua paradoxal condição assassina, Nietzsche diz: "são os distantes que pagam pelo vosso amor do próximo; e, já quando cinco de vós estão juntos, há sempre um sexto que deve morrer" (...) [de modo que] meus irmãos, eu não vos aconselho o amor do próximo: aconselho-vos o amor do distante" (Idem, p. 77). Entre os dois trechos citados, duas ocorrências de Übermensch: "não o próximo, eu vos ensino, mas o amigo. Que seja o amigo, para vós, a festa da terra e um presságio do super-homem" e "no amigo, deves amar o super-homem como a tua razão de ser". Não há próximos, no sentido cristãos, porque não há iguais, ou seja, não há fôrmas/modelos atualizados: há, sempre, outros, eventualmente, amigos, seres de si, em transição de si, distantes. O Übermensch - a trasição, o ocaso, a ponte - é "tua razão de ser".

12. Haroldo, meu amigo Haroldo, nesse sentido, nesse preciso sentido que acabo de delinear, é que posso, eu, repetir a "oração" de Zaratustra: "Possa eu dar à luz o super-homem" (Idem, p. 81). O que não significa ser aquele maluco-beleza, do Raul Seixas, não é ser aquela metaformose ambulante. É, apenas, saber que é-se o que se vai sendo, por meio dos valores escolhidos, colhidos da tradição, contra a Tradição, de Deus e de Estado, eventualmente, de Deus-Estado. "'Mortos estão todos os deuses; agora, queremos que o super-homem viva'" (Idem, p. 93). Sim, nesse sentido, Haroldo, apenas nesse, aquele "lugar-tempo do Osvaldo".

13. Mas, advirto a meus amigos, Haroldo, Jimmy e observadores distantes: nada me fala mais alto do que a advertência de Zaratustra - a doutrina de Nietzsche que eu mais admiro, dentre algumas que só admiro e outras que não endosso:

13.1 "Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra! Sois os meus crentes; mas que importam todos os crentes!

13.2 Ainda não vos havíeis procurado a vós mesmos; então, me achastes. Assim fazem todos os crentes; por isso, valem tão pouco todas as crenças"
(Idem, p. 92).

14. Bem, vou parar aqui, na Primeira Parte de Zaratustra. Com isso, penso ter me posicionado em face do § 6 do post de Haroldo - 2008/81 - Reflexões a Caminho. Primeiro, não parece ser historicamente acertada a relação de Nietzsche com a filosofia germânico-nazista. Segundo, o Übermensch, que Haroldo pôs na minha varanda, e introduziu-o por meio do verbo "desgostar", não me parece ser aquele ali sugerido - o Super-anti-cristão, no sentido de um Super-Contra-Modelo, diante de cuja menção evoca-se o exorcismo de Gadamer. Antes, parece-me o Não-Modelo, a autonomia:
"foge, meu amigo, foge, para a tua solidão e para lá onde sopra um vento rude e vigoroso" (Idem, p. 70). O homem-transição, o Übermensch - e, aqui, postulo, o além-homem, o trans-homem, não o super-homem (não endossaria a tradução da Bertrand) é a condição humana, o Homo hermeneuticus de Heidegger, que, num primeiro momento, entendeu o sentido da supressão de todos os valores (mas voltou atrás... E tanto, que Lévinas, judeu, tem problemas com a memória de Heidegger, desse segundo, que voltou atrás...). O Übermensch está para o Dasein como a interpretação "nazista" do Übermensch está para a Linguagem e a Tradição, seja em Heidegger, o segundo, seja em Gadamer. Linguagem e Tradição são, a seu tempo, o disfarce de Deus: o que se pretende, aí, é fazer o homem, que é ponte, que é ocaso, que é transição, que não pode voltar, parar, seguir, e, contudo, deve ser, sempre, superado - parar. Parado, todavia, que é? Nem animal, nem homem, nem Übermensch, mas um simulacro de projeto com defeito, um ovo gorado. Tristíssima figura

15. Repito: não sou especialialista em Nietzsche. Como Jimmy disse, tiro tudo da minha cabeça - será isso um defeito? Pago o preço de estar, eventualmente, equivocado. Devolvo o bastão da ágora. Ouço, agora, a tréplica. Talvez ela me ajude a superar-me hoje, a afastar-me um pouco de mim mesmo, mais uma vez.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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