quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

(2008/85) "Basta (MESMO [só]) ler"?


1. Mein Kampf, de Hitler - leu-mo, nesse trecho, André Chevitarese (que o carregava em saco opaco de papel ["para não me chamarem de nazista, Osvaldo"]), menciona, explicitamente, pseudo-exegeticamente - mas, para uma exegese que está na moda, de modo "perfeitamente válido" (tudo é política, viva!) -, aquela passagem de Jesus expulsando os vendilhões - judeus, ele frisava - do templo, e, concluía o autor famoso, também assim devia a Alemanha fazer com os judeus, essa raça tão ruim que até Jesus, boníssimo, odiava... "Basta ler", e ver, então, que Jesus, deixemos de lado a natureza teológica e literária dos Evangelhos, Jesus, em sua intentio auctoris, dá, mesmo, certa razão ao nazismo... Oh, sim, "que caia sobre nós o sangue desse justo"! Quanto a mim, diante desse tipo de leitura, feito por Hitler, feita por inúmeros cristãos, feita por muitos de nós, e, principalmente, quando sou eu a fazê-lo, se e quando o fizer, é injustificável. Engodo. Esbulho. Negligência. Política. Caso a caso, verifique-se a conveniência da conjunção aditiva ou da alternativa.

2. Sua citação, Haroldo, do que vai à página 24 da versão de O Anticristo, que tens à mão, cheirando a nova, e que, na minha, lisboeta, da Guimarães, vai à 38, será, mesmo, que "basta" lê-la para se presumir uma intentio auctoris legitimante da história dos efeitos nazistas de Nietzsche? Roma, a que se fez, digamos, em 325, depois, em Trento, mais tarde, no Vaticano I, será que ela está, mesmo, em petrus? O "Cristianismo Padrão", aquele tão caro a evangélicos, será que ele está mesmo naquela reconstrução idílica da "igreja primitiva"? Uma passagem, uma, pode, mesmo, servir de indubitável garantia, para afirmações definitivas?, insofismáveis?

3. Outro dia, Élcio, nosso amigo, surpreendeu-se comigo, de eu considerar que Nietzsche trabalhe com um sentido temporal para a história, ao que Élcio me fez saber daquela afirmação (a preferida de Vattimo!) de Nietzsche - não há fatos, só interpretação de fatos. Era como se essa afirmação, essa única, fosse, sozinha, a chave de toda a leitura de Nietzsche, mesmo quando ele, em A Gaia Ciência, fala de método, de história crítica, às dezenas de citações (cf., em O Anticristo, que está já à mão, a expressão "afrontando toda a realidade histórica", seção XXVI, na minha versão, p. 51, ou essa anterior, desconsertante para aquela leitura com base num citado solto: "a história de Israel é inestimável como história-tipo [...] indico cinco fatos da mesma" [! - grifo meu], seção XXV, p. 50 - e, se não basta: "Não a realidade, não a verdade histórica!..." [!], XLII, p. 81. O mesmo valeria para a "hsitória dos efeitos" de um Nietzsche pós-moderno: leia, Haroldo, a seção LII para saber a crítica que Nietzsche faz aos teólogos: "sua incapacidade filológica" - metáforas, tá!). Ah, é preciso reconstruir todo um pensamento, antes de servir-se de uma frase aqui, outra ali, de resto, fruto de uma história dos efeitos a canonizar interpretações de mármore, como as cláusulas pétreas que os juristas garantem haver na Constituição...

4. E, se Haroldo, a seção XIX de O Anticristo fizer apenas eco aos discursos então circulantes, logo, anafóricos, nos dias de Nietzsche? Losurdo teria recuperado toda a correspondência (disponível) de Nietzsche, e lê cada obra sua à luz dos conceitos circulantes, o "capital simbólico" com o qual Nietzsche dialoga - uma história social de Nietszche! Deixo em aberto a questão.

5. Mas, quanto a essas "raças" do norte da Europa, talvez fosse interessante recordarmo-nos de que são originárias das conversões "cristãs", de contrato, entre Roma e as tribos bárbaras, cristianizadas à força da política do "eu e a minha casa": uma tribo dorme bárbara, e, pela manhã, dado que seu chefe assina acordos com Roma, desperta cristã. Pense, Haroldo, no mapa da Europa, pense na fronteira norte do Império Romano (já cristão) - o que está além dessas fronteiras? O Norte da Europa, de que fala Nietzsche. Costurou-se, aí, uma fronteira forçada, desde o século IV.

6. Mas tenhamos pressa, e cheguemos ao XVI, de Lutero. Ora, que surpresa! Quais países tornaram-se "protestantes"? Justamente eles. O Norte da Europa, depois de onze, de dez séculos de "cristianismo", depois de terem aberto mão dos deuses que inventaram antes. Talvez, Haroldo, é uma questão para se investigar, não?, Nietzsche esteja fazendo referência a dois elementos anafóricos - a teoria das "raças", fomentada pelo darwinismo da moda, então, bem como a argumentação de que os protestantes, conquanto críticos de Roma, mantiveram-se aliados ao seu Deus romano. Nese contexto explicativo - cuja validade precisa ser verificada, não há nada, absolutamente nada de nazismo na citação, mas, apenas, uma contra-crítica ao fato de que as "raças" não-romanas, os povos anexados, conquanto tenham rompido as correntes de Roma, não o tenham feito quanto às correntes de "Deus".

7. De fato, é o que Nietzsche vai argumentar na seqüência da citação, de que você extraiu parte. Convém, portanto, extrair um citado maior: "XIX - O facto de as raças vigorosas do Norte da Europa não terem repelido o Deus cristão (fica implícito - depois de o terem adotado), não honra de modo algum o seu talento religioso (Nietzsche está usando aqui o recurso retórico de Paulo, em Rm 6, respondendo anaforicamente a críticas, antes de elas surgirem, mas que, ele sabe, surgirão? Mais, já surgiram?) - para já não falar do seu gosto. Deveriam elas ter triunfado sobre esse produto da décadence, mórbido e senil. Mas, porque o não repeliram (de novo, fica implícito - isto é, quando repeliram o cristianismo romano), caiu sobre elas uma maldição: absorveram nos seus instintos a doença, a senilidade, a contradição - e desde então não voltaram a criar Deus algum! Quase dois milênios decorridos e nem um único Deus novo! Apenas subsistindo sempre e como que por direito, como um ultimatum e maximum da força criadora do divino, do creator spitirus no homem, esse miserável Deus do monoteísmo cristão! Esse híbrido edifício de escombros, feito de zero, de conceito e de contradição, no qual todos os instintos da décadence, todas as cobardias e fadigas de alma encontram a sua sanção! // XX - Não queria, com a minha condenação do cristianismo..." (Nietzsche, O Anticristo, Guimarães, 1988, p. 38-39). Ora, é o citado que tem aspecto "nazista", ou é, antes, hermeneuticamente, gadamerianamente, eu diria, minha pré-concepção de um Nietzsche nazista quem retroprojeta o nazismo nesse citado, como fazemos com Jesus, em Isaías? E como? Por meio da palavra "raça". A palavra raça torna-se sobredeterminante, e, a partir daí, faz-se tudo o mais dizer o que ela quereria dizer, lida, é claro, por aquela ótica - um Nietzsche nazista, um Isaías cristão. Mas eis que o parágrafo, a rigor, apenas menciona a palavra (que, nesse caso, deve ser lida à luz do parágrafo todo, de todo o livro!), ao passo que Nietzsche carrega toda a sua carga na crítica a essa raça, a esses povos ainda cristãos, a esses protestantes, bem como ao cristianismo.

8. Não sei, Haroldo, honestamnete, se "basta ler" o citado. Não "basta ler", não, eu acho. Tem-se de dobrar-se, o leitor, às palavras, ao seu sentido, ao seu sentido conforme expresso em termos schleiermacherianos/diltheyanos, bettianos, ginzburguianos - ou seja, o que é que Nietzsche está dizendo com essas palavras que diz? Gadamer serve apenas para ajudar-nos a lembrar que, porque pouco interessadas nisso, as pessoas acabam lendo as palavras antigas, dos outros, a partir de si mesmas. Pena que Gadamer, eventualmente, esteja dizendo que é assim que sempre é ou é assim que sempre deve ser. Mas se isso é apenas um dado, não necessáriamente, um fado, deve-se, contra isso, contra nós, curvar-se às palavras. Losurdo o tentou fazer. Falta-me informação para tentá-lo. Mas, não, audácia!

9. Por outro lado, porque não estou comprometido com a aceitação da história dos efeitos - história da recepção, melhor diria (aquela expressão dá a impressão que são as palavras mesmas do passado que geram os efeitos, mas isso simplifica o jogo cultural: nunca são as palavras em si, mas o modo como elas são recebidas. "História dos efeitos" é, já, uma maneira de classificar o jogo...) - de Nietzsche, e, por outro lado, porque estou informado da descontrução dessa mesma história dos efeitos de Nietzsche, levada a cabo por Domenico Losurdo, que, talvez, insisto, talvez, Haroldo, você e eu sabemos o que é exegese, o que está em jogo, as dinâmicas frágeis em que ela opera, talvez, então, eu possa ver no parágrafo eixos de força que, eventualmente, passaram ao largo de sua leitura. Questão de checar e ver.

10. Seja como for, mais adiante, na seção XXXVII, Nietzsche maneja o conceito de "toda a humanidade livre e sem ódio" (p. 72), e, ao fazê-lo, ratifica que sua crítica é ao Cristianismo que se põe valorosamente contra isso. Não me iludo, contudo - isso, para Nietzche, não significa o mesmo que para mim, que comungo com os valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Ele, não. Ele, confessadamente, é aristocrático: liberdade, sim, igualdade, não. Ele nem aceita o casamento por amor! Se, por ser aristocrata, Nietzche é nazista, Churchill igualmente, porque não conheço nenhuma nação mais aristocrática do que aquela que enfrentou ousadamente o nazismo. Aliás, coisa impressionante, a Índia e a Inglaterra são-no a seu modo - uma, político-filosoficamente, outra traditivo-religiosamente. Corremos o risco de ver em todo não-democrático um nazista...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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