segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

(2008/129) Erotismo - uma crítica


1. Quis o "acaso" - a rigor, um convite casual de Ronaldo Cavalcante - que um artigo meu constasse da coletânea Novas Perspectivas sobre o Protestantismo Brasileiro, organizada por João Cesário Leonel Ferreira e co-publicada pela Paulinas e Fonte Editorial nesse preciso momento. Desse modo, chegou-me às mãos os exemplares de "autor", o que me permitiu ter contato com os artigos constantes da coletânea.

2. Quero chamar a atenção do leitor para um artigo, o penúltimo: "Interdição e Transgressão Sexual no Protestantismo: a perspectiva batailliana", de Gina Valbão Strozzi. Uma vez que o artigo consiste, a bem da verdade, numa consideração a respeito do tema do "erotismo" na obra de Georges Bataille, vale, então, o presente post, mais como uma crítica à posição daquele teórico - que tomo nos termos apresentados por Gina - do que uma crítica ao próprio artigo/resenha.

3. Vou direto à Tese/Sinopse da resenha, que cito textualmente: "em termos simples, o desejo do erotismo é o desejo que triunfa sobre a interdição. Ele supõe a oposição do homem a si mesmo. Ele supõe que a continuidade e a consciência se aproximem. Ele supõe a religião" (p. 377). Bem, uma vez que é minha prioridade comentar textos dos quais tenho alguma crítica corretiva a fazer, deve-se esperar, aqui, de minha parte, um desacordo em relação à tese apresentada, como de Bataille, por Gina.

4. Discordo peremptoriamente de que o desejo erótico, o desejo do erotismo, encontre seu fundamento na interdição. Longe disso, até. Que ele, o desejo, emerja, também, em ambiente e em topos de interdição, isso nada tem a ver, direta e necessariamente, com o próprio desejo, conquanto seja um capítulo especial desse tema - também um capítulo da Psicologia da Religião sobre o que minha amiga Mary Rute Esperandio, ah!, que pena, poderia dissertar.

5. Em sentido amplo, amplíssimo, o desejo erótico corresponde a uma das três dimensões da consciência humana de si - a dimensão volitiva, da vontade, responsável que é pela erotização do cenário físico no qual o homem e a mulher caminham. A relação consciência/volição humana e ecosfera dá-se por meio da segregação, pela consciência humana, de dispositivos erotizadores de determinados atratores do real, o que faz com que o sujeito consciente de si sinta-se ligado ao real, desejoso dele, preso a ele - a depressão, em sentido clínico, é a inibição patológica dessa dimensão erótica (físico-eletro-química) da consciência humana: aí, nada tem sabor, nada é desejável, nada é erótico. Nesse caso, em sentido amplo, antes que filho da interdição, o desejo é parido pela abertura - sem trocadilho - do e ao real, que se escancara à consciência humana (cf. nesse caso, por coincidência, meu próprio artigo, o último do volume: Osvaldo Luiz Ribeiro, O Complexo Hermenêutica e Consciência - da viscosidade úmida dos mundos, em José Cesário Leonel Ferreira, Novas Perspectivas sobre o Protestantismo Brasileiro. São Paulo: Paulinas/Fonte Editorial, 2009, p. 383-424).

6. Já em sentido restrito, mas apresentando-se como uma super-especialização daquele primeiro sentido, geral, o desejo erótico - sexual - nada tem de necessariamente ligado ao interdito: pelo contrário. Trata-se, aí, em sentido noológico - ou seja, aquele sentido próprio da condição humana - de desenvolvimento de dispositivos biológicos, DNÁdicos, pulsionais, corporais, gonodais, daquilo que, nas espécieis animais, mantém-se como ciclo de cio, processo ainda totalmente controlado pelas rotinas biológicas da máquina viva - da ameba ao elefante (ao que se sabe...). Na espécie humana, a emergência do interdito é posterior à da sexualidade erótica, bem como muito mais, se não exclusivamente, ligado aos regimes de socialização e civilização do que aos processos bio-psicológicos da evolução da espécie.

7. Assim, o desejo não tem fundamento algum no interdito - ainda que o interdito possa, por regimes noológicos, mais do que biológicos, levá-lo ao recrudescimento, por retro-alimentação negativa. Ora, houvesse algum sentido na tese - "o desejo do erotismo é o desejo que triunfa sobre a interdição" -, o desejo esmoreceria, quando não acabaria por completo, quando findado o interdito. Sendo claro: um casamento consensualmente moderno, com o que quero me referir ao casamento por amor, em que não há, sob nenhum signo ou símbolo, "interdito", de nenhuma espécie, salvo aquele que o diálogo estabelece - quando, então, esmorecem, se houve, desejos extra-dialogais, unilaterais -, ele, sendo verdadeira a tese, seria o sepultamento do desejo, a mortalha do erotismo. E, senhores, permitam que um inveterado monogâmico perdido de amor e paixão por ela, por Bel, lhes desminta a tese - nada há de interditado, e, contudo, tudo há de febre e sol e inferno - erotismo no céu, já sabemos, não há de ser esperado (se bem que há uma igreja em Minas, em Tiradentes, em que anjas!, sim, anjas têm, à mostra, genitais, enquanto ostentam ventres grávidos...).

8. Outro dia, discutíamos, Jimmy, "nosso" Jimmy, Daniel Justi (UFRJ/PUC-Rio), Élcio Sant'anna (UMESP) e eu, e, contra o que se dizia, ali, sobre, por sua vez, o que se escrevera alhures a respeito de "umbanda" e "candoblé", eu tinha idéias relativamente diferentes, e não por lê-las em livros, mas por ter vivido até os dezessete anos na casa de minha tia, sacerdotiza da umbanda ("terreiro" então localizado ao lado da Primeira Igreja Batista de Mesquita, a que vim me filiar aos dezoito anos, depois de anos devolvendo-lhes a bola que caía no meu quintal). Independentemente do que consta dos livros, o que eu vi em todos aqueles anos, e não apenas no terreiro de minha tia, mas também naqueles que, freqüentemente, visitávamos, ela, minha mãe, e eu, a "realidade" parecia ter (também?) outras faces. É o caso do erotismo - não é necessário ver na interdição religiosa a força, o fundamento, do desejo - seja porque o interdito funciona, incontáveis vezes, seja porque há o desejo, invariavelmente, também fora do interdito. Logo, o interdito não me parece um elemento constitutivo e indissociável do desejo, conquanto, eventualmente, estejam ocorrendo no mesmo fenômeno.

9. No caso da religião, talvez se pretenda enxergar no interdito a razão de ser do desejo, como se o desejo, nesse caso, fosse disparado pelo "não". No entanto, não penso assim, e - ao menos a minha - a realidade parece desmentir a (hipó)tese. Talvez fosse mais adequado afirmar que, malgrado o interdito, ainda assim o desejo aflora, e, uma vez aflorando, haverá de, dadas certas circunstâncias, "triunfar sobre a interdição" - mas não como um triunfo do filho (desejo) sobre o pai (interdito), mas como uma força biológico-noológica que tem, quando quer, todas as forças para vencer tabus e "nãos" contrapostos pela sociedade.

10. Mas, ah, meus amigos, não me parece muito difícil afirmar, sem medo de erro, que, primeiro, nasceu o desejo - somos bichos, antes de tudo! -, e, depois, muito, muito tempo depois, a interdição - porque somos bichos, sim, mas, ao mesmo tempo, seres humanos. A nós, só a nós, é dado o não.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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