1. Noite de sábado. Muitas coisas possíveis: passar algumas horas conversando com Bel, "upar" Isabeau e Navarre no Rose, ler alguns dos meus diabos mortos - eventualmente, um dos vivos! Qualquer dessas coisas dar-me-ia muito, muito prazer. Em lugar disso, um compromisso. Por força dele, ouvir um discurso. Dentre as coisas que ouvi, e que fizeram a noite passar muito, muito, muito lentamente, porque o sofrimento faz o sol andar mais lento, e, com o sol andando mais lento, obedientes, todos os relógios, analógicos e digitais, diminuem a marcha, a cadeira dói, a coluna reclama, algumas "pérolas" - e eu, um porco...
2. Ouvi, por exemplo, que "teologia" se faz em comunidade, e quem não está em comunidade, não faz teologia - faz outra coisa, disse-se, mas, não, "teologia". Naturalmente que, não se definindo aí o que vem a ser teologia, fiquei ali, na cadeira, em sofrimento, perguntando-me do que se falava. Primeiro, porque, faz-me rir!, que comunidade faz teologia? Que eu saiba, "sacerdotes", eventualmente disfarçados, eventualmente "constrangidos", eventualmente de forma descaradamente anacrônica para o século XXI, eles - e, cada vez mais, elas (brigar tanto para isso!), fazem teologia para as comunidades. E isso tem outro nome... Depois, que coisa é essa que não se pode fazer "só"? O pensamento, até onde sei, é uma atividade solitária - que pede diálogo antes, depois, mas, jamais, nunca, em tempo algum, durante. Ah, vai ver é uma teologia que se faz sem pensar... Deve ser. Sim, sou "teólogo" de gabinete - e, deixemos de lado os rótulos, agrada-me, e muito, imaginar que o que eu faço é absolutamente diferente do que ali se propunha fazer...
3. Ouvi que o "racionalismo" está out, e - ai, pobre Morin! -, citando-se Morin, falou-se de "racionalidade". Oh, uma citação de Morin resolve tudo, porque, se o discurso está baseado em Morin, Edgar Morin, gênio vivo, pronto, está tudo acertado, como quem cita um versículo bíblico. Contudo - por uma razão confessada (cf. adiante) pelo próprio discurso: a exegese é invenção da cabeça de arrogantes e presunçosos sujeitos -, Edgar Morin, os livros de Edgar Morin, nem um nem outros endossariam nem uma linha, nos termos em que foram lidas, do discurso. Porque Edgar Morin não cospe no racionalismo do XVII, do XVIII e do XIX, ele o ultrapassa, sem desmontá-lo, como desejaria o discurso que fui obrigado a ouvir. Não houvesse um leitor de Morin naquele ambiente, o discurso teria assentado um falso fundamento - erro filológico que bem descreveu Nietzsche a respeito da incapacidade filológica dos "teólogos" ("outro sinal distintivo dos teólogos é a sua incapacidade filológica. Eu entendo aqui, por filologia, em sentido geral, a arte de ler bem, de saber distinguir os factos, sem os falsear com interpretações", O Anticristo, LII, p. 105) -, uma "fraude" filológica, porque Edgar Morin jamais, não esse Morin disponível para leitura, público, até fácil de ser lido, o problema é que é indigesto para uma teologia de figurinhas carimbadas, jamais, dizia eu, endossaria o tipo de "argumentação" (?) do discurso. Para o discurso, salve-se com a incapacidade filológica, porque a alternativa é a fraude política...
4. Ouvi (novidade...!?) que a "exegese" é pura presunção - o que está bastante de acordo com a performance do discurso, quanto a Morin, que o discurso ostentou: para quem considera a exegese uma idiossincrasia, tudo foi bem coerente... -, que ela se arvora em juíza de textos com base num racionalismo esgotado. A alternativa é a poesia! Ah, a poesia! Meu Deus, quantos poetas citados! - salvou-se Quintana... É necessário realmente que uma determinada espécie de teologia tenha despeito profundo pela exegese, porque é essa exegese que a soterra a sete palmos - com poesia e tudo! Não sobra nada, absolutamente nada, de uma certa teologia de "comunidade", depois de uma saudável e higiênica leitura exegética da Bíblia - de modo que tem razão o discurso em querer levar seus ouvintes a correrem ao simples som da palavra: ali vai um despropósito chamado exegese, vamos ficar aqui, com nosso joguinho...
5. Depois ouvi o normal de uma "pregação" - mas com uma novidade: pôs-se, no mesmo saco, o "racionalismo" (leia-se a exegese!) e a "doutrina" (leia-se, a ortodoxia teológica milenar). Mas como? O que fica? Ah, fica o discurso, a velha "metáfora", tão em moda!, discurso vazio como uma parede de madeira, comida, por dentro, por milhões de cupins: não tem mais carne, não tem mais corpo, só a casca, só as palavras. Para quê? Para, com elas, fazer pessoas se amarem... Falar de corpos por meio de palavras sem corpo... Curiosa estratégia. Quanto a mim, denuncio: política. Manter-se e manter tudo como está, mas de um jeito que, à mesa, com os comensais-marechais da estratégia, se possa apontar como "fraude" a exegese, como "política", a ortodoxia doutrinária, e "posar" de poético libertário da corporeidade... Afunda-se a si e a todo que o seguir num mar de lama mitológica - quando se tentar agarrar a algo firme, só haverá palavras, mais nada.
6. De modo que a noite me foi de muito desprazer. Cumpri resignadamente minha tarefa - sou muito educado, penso que até à quase castração: sorri sorrisos de cortesia o tempo todo. Peroratio paga o preço. O leitor, ao menos, veio aqui por que quis... Se minhas palavras são pesadas, não me culpe - é o peso delas.
7. Saio dessa noite com uma sensação estranha de que, de algum modo, era para mim que se falava, ou, para ser menos drástico, um contra-Osvaldo saltava de cada palavra lida.
8. No fundo, é uma honra ver-me imprestável para esse discurso.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Ouvi, por exemplo, que "teologia" se faz em comunidade, e quem não está em comunidade, não faz teologia - faz outra coisa, disse-se, mas, não, "teologia". Naturalmente que, não se definindo aí o que vem a ser teologia, fiquei ali, na cadeira, em sofrimento, perguntando-me do que se falava. Primeiro, porque, faz-me rir!, que comunidade faz teologia? Que eu saiba, "sacerdotes", eventualmente disfarçados, eventualmente "constrangidos", eventualmente de forma descaradamente anacrônica para o século XXI, eles - e, cada vez mais, elas (brigar tanto para isso!), fazem teologia para as comunidades. E isso tem outro nome... Depois, que coisa é essa que não se pode fazer "só"? O pensamento, até onde sei, é uma atividade solitária - que pede diálogo antes, depois, mas, jamais, nunca, em tempo algum, durante. Ah, vai ver é uma teologia que se faz sem pensar... Deve ser. Sim, sou "teólogo" de gabinete - e, deixemos de lado os rótulos, agrada-me, e muito, imaginar que o que eu faço é absolutamente diferente do que ali se propunha fazer...
3. Ouvi que o "racionalismo" está out, e - ai, pobre Morin! -, citando-se Morin, falou-se de "racionalidade". Oh, uma citação de Morin resolve tudo, porque, se o discurso está baseado em Morin, Edgar Morin, gênio vivo, pronto, está tudo acertado, como quem cita um versículo bíblico. Contudo - por uma razão confessada (cf. adiante) pelo próprio discurso: a exegese é invenção da cabeça de arrogantes e presunçosos sujeitos -, Edgar Morin, os livros de Edgar Morin, nem um nem outros endossariam nem uma linha, nos termos em que foram lidas, do discurso. Porque Edgar Morin não cospe no racionalismo do XVII, do XVIII e do XIX, ele o ultrapassa, sem desmontá-lo, como desejaria o discurso que fui obrigado a ouvir. Não houvesse um leitor de Morin naquele ambiente, o discurso teria assentado um falso fundamento - erro filológico que bem descreveu Nietzsche a respeito da incapacidade filológica dos "teólogos" ("outro sinal distintivo dos teólogos é a sua incapacidade filológica. Eu entendo aqui, por filologia, em sentido geral, a arte de ler bem, de saber distinguir os factos, sem os falsear com interpretações", O Anticristo, LII, p. 105) -, uma "fraude" filológica, porque Edgar Morin jamais, não esse Morin disponível para leitura, público, até fácil de ser lido, o problema é que é indigesto para uma teologia de figurinhas carimbadas, jamais, dizia eu, endossaria o tipo de "argumentação" (?) do discurso. Para o discurso, salve-se com a incapacidade filológica, porque a alternativa é a fraude política...
4. Ouvi (novidade...!?) que a "exegese" é pura presunção - o que está bastante de acordo com a performance do discurso, quanto a Morin, que o discurso ostentou: para quem considera a exegese uma idiossincrasia, tudo foi bem coerente... -, que ela se arvora em juíza de textos com base num racionalismo esgotado. A alternativa é a poesia! Ah, a poesia! Meu Deus, quantos poetas citados! - salvou-se Quintana... É necessário realmente que uma determinada espécie de teologia tenha despeito profundo pela exegese, porque é essa exegese que a soterra a sete palmos - com poesia e tudo! Não sobra nada, absolutamente nada, de uma certa teologia de "comunidade", depois de uma saudável e higiênica leitura exegética da Bíblia - de modo que tem razão o discurso em querer levar seus ouvintes a correrem ao simples som da palavra: ali vai um despropósito chamado exegese, vamos ficar aqui, com nosso joguinho...
5. Depois ouvi o normal de uma "pregação" - mas com uma novidade: pôs-se, no mesmo saco, o "racionalismo" (leia-se a exegese!) e a "doutrina" (leia-se, a ortodoxia teológica milenar). Mas como? O que fica? Ah, fica o discurso, a velha "metáfora", tão em moda!, discurso vazio como uma parede de madeira, comida, por dentro, por milhões de cupins: não tem mais carne, não tem mais corpo, só a casca, só as palavras. Para quê? Para, com elas, fazer pessoas se amarem... Falar de corpos por meio de palavras sem corpo... Curiosa estratégia. Quanto a mim, denuncio: política. Manter-se e manter tudo como está, mas de um jeito que, à mesa, com os comensais-marechais da estratégia, se possa apontar como "fraude" a exegese, como "política", a ortodoxia doutrinária, e "posar" de poético libertário da corporeidade... Afunda-se a si e a todo que o seguir num mar de lama mitológica - quando se tentar agarrar a algo firme, só haverá palavras, mais nada.
6. De modo que a noite me foi de muito desprazer. Cumpri resignadamente minha tarefa - sou muito educado, penso que até à quase castração: sorri sorrisos de cortesia o tempo todo. Peroratio paga o preço. O leitor, ao menos, veio aqui por que quis... Se minhas palavras são pesadas, não me culpe - é o peso delas.
7. Saio dessa noite com uma sensação estranha de que, de algum modo, era para mim que se falava, ou, para ser menos drástico, um contra-Osvaldo saltava de cada palavra lida.
8. No fundo, é uma honra ver-me imprestável para esse discurso.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
4 comentários:
Professor Osvaldo,
Sei lá, mas tenho aprendido que a comunidade são as pessoas, sejam elas da igreja ou não. No meu curtíssimo tempo de dois anos de ministério pastoral, que se encerra no próximo dia 28, talvez tenha encontrado mais utilidade para aquilo em que acredito fora do que dentro da suposta comunidade na qual estava inserido.
Sinto que a marginalidade de um discurso não-oficial é muito grande. E interessa a apenas um grupo muito pequeno. Sempre aqueles e aquelas que não se enquadram com um tipo muito tradicional de estrutura religiosa. Porém esse grupo não está muito disposto a lutar por ideais libertários. Preferem dizer, como me disseram: "Um dia você vai achar um lugar onde suas lindas idéias poderão ser entendidas."
Concluo, mesmo de modo precipitado, que "a comunidade" é menos concreta que abstrata. A mesma coisa digo do tal "gabinete". Isto para mim significa estar longe da realidade, o que pode acontecer com alguém que esteja entre pessoas, não necessariamente preso em uma sala.
Não sei dizer se teologo dentro ou fora da realidade. Só sei que acredito na realidade. E ela é muito concreta para mim. Acredito em uma comunidade concreta, mas a realidade é que ela é muito abstrata. Suponho que Tillich já notou isso, tanto que a tal comunidade de Comunidade Espiritual. E ainda inventou um papo de comunidade manifesta e comunidade latente.
Tudo isso não passa de um acordar para a vida, que está longe de nossos devaneios oníricos. Mas ainda é cedo para eu me converter a um racionalismo extremo, pelo menos em matéria de fé.
Estou perdido mesmo.
Aquele abraço.
Fanuel, fora do "pacote" da "fé" - que desenha para nós uma estradinha, com oásis, perigos, como em "O Peregrino", tudo muito pré-definido, tudo muito certinho, é só você ir santando de alpondra em alpondra, e pronto -, fora desse "pacote", quem não está - é - perdido? A vida é um labirinto: e a única certeza é que a saída dele é a saída dela.
Quanto à comunidade, você divagou muito. Não se trata de discutir isolamento social - não é isso que eu quis dizer com "gabinete", como se postulasse um ascetismo. Eu duvido que alguém próximo a você acredite tanto na realiade quanto eu - sou até chamado de "positivista"! O que eu disse com a expressão "teólogo de gabinete" é que minha reflexão é solitária, reflexiva, com base, claro!, na vida real, concreta - o que não tem base em nada da vida concreta é a fé, principalmente a cristã, que é racionalização sobre mito e dogma, sendo que o bom cristão é aquele que substitui a vida por tais dogmas e mitos.
É preciso distanciamento - como quem trafega atrás de caminhões, na estrada -, é preciso manter distância, não engajar-se, sair, para refletir. A reflexão dentro, Felipe, não vale um centavo furado, porque toda reflexão engajada é pseudo-reflexão, é apologia, é defesa da posição, é raconalização sob encomenda, "delivery". Foi Nietzsche quem o disse, só repito: todo homem de partido mente...
Se você não "sair" da "comunidade", não poderá assumir, por exemlo, que não há a menor possibilidade de o Espírito Santo estar em Gn 1,2 - salvo, claro, por meio de retóricas alegórico-metafóricas, anacrônicas, sempre. Mas, se você enfia a cabeça no "mundo" da comunidade, enredado que está até o pescoço pela catequese, pela "evangelização", pela doutrina, pela pregação, essas coisas que Menocchio ("O Queijo e os Vermes") a tudo chama de "mercadoria", vão oprimir a tal ponto seu cérebro que você se verá obrigado a repetir tais impropriedades, eventualmente mentindo até para você mesmo.
O que ainda não está resolvido para mim é como "voltar" depois. Como eu estou solitário nessa atitude, a minha comunidade não faz o que eu faço, não "sai", pelo contrário, ela enfia-se até o êxtase - agora até a erotização! -, o resultado de minha "saída" e reflexão não pode retornar, para aprender novo ser-comunidade, porque, quando volto, o que tem lá me assusta, o que vejo são pessoas perdidas de si mesmas, fora de si, alienadas, e, como são maioria, o "doido" sou eu.
Logo, aguardo com paciência o movimento de saída da própria comunidade de si mesma, para poder ver como se faz o retorno. Sair para refletir não é um gesto de não-retorno - a recusa da comunidade (e eis a desgraça: a recusa da liderança dessas comunidades em fazê-la refletir, pelo contrário, fazendo-a atolar-se cada vez mais eu sua não-autonomia, seja dogmaticamente, como quis e quer a Tradição Mor, seja "poeticamente", metaforicamente, como está na moda para um evangelicalismo dissimulado -, a reflexão "fora" é, antes, uma imposição da lucidez - até da matemática (cf. o Teorema de Gödel, no Google). O retorno fica obstaculado pela própria comunidade. E das duas uma, ou você "se mata", ou distancia-se cada vez mais...
Mas não perca o fio da meada, não perca o foco: eu disse que a comunidade em si não faz teologia, e não faz, mesmo - quem a faz, quem veste a comunidade com a teologia que quer é a liderança (vide "Igreja com Propósito" e derivativos), o teólogo "profissional", que, aproveitando-se da hipnose natural das ovelhas, brinca de demiurgo, de deus, eventualmente, de diabo...
Mas a tarefa é árdua - refletir é dolorido. O Evangelho no Brasil arrancou a cabeça (teve-a, um dia?) - mesmo lideranças que se vêem a si mesmas como "progressistas" (tanto que arrumaram um nome só para si: evangelicais!) arrancaram a cabeça: para você segui-los, tem de arrancar a cabeça também.
Saio, sim - porque é saudável. O ambiente da comunidade de massa, heterônomo, é asfixiante.
No entanto, sim, sim, sim, é a comunidade que deveria ter a existência concreta - mas, Felipe, responda-me, como?, se a comunidade é constituída de pessoas e, ali, só vão pedaços de gente sem "espírito"?, massa de barro na mão de oleiros?
O instinto de comunidade não passa de uma tola crença no outro. Gosto de pensar, via Fernando Pessoa, que há vários outros dentro de nós. E «viver é ser outro». A ontologia estaria, portanto, na alteridade.
Mas tudo isso não passa de sensação. Sinto, logo existo — talvez diria Pessoa, respondendo a Descartes. É no Reino do Sentir que se pode viver.
Todo meu contato pastoral com a tradição cristã não passou de uma sensação de que haveria uma beleza essencial e possível nos símbolos religiosos. Meu contributo não passou de uma tola crença nisso. Afinal, assim como sinto que acredito na Poesia Pessoana assim também sinto que acredito na Poesia dos símbolos de fé — talvez haja mesmo aquele "sentimento oceânico" de que Freud discordou.
Sei que não passo de alguém com uma atitude infantil para com um campo minado, cheio de lobos. Politicamente, chego a ser estúpido, porque me engajo em causas que não pediram meu engajamento — como, e.g., a causa ecumênica. Mas tudo o que me fizer sentir útil a um outro cristianismo, diferente daquele opressor, me atrai.
Sobre Gn 1,2, lembro-me de um post que escrevi e publiquei no meu blog em abril deste ano, que, intitulado Gênesis 1,1s, dizia o seguinte:
Quando resolveram brincar de massinha, após enjoarem de ficar olhando um para a cara do outro, no auge dos tempos de descanso que qualquer ser vivo invejaria viver, fizeram o céu e a terra, ou, como deve ter dito o mais pessimista, inventaram sarna para se coçar. Nada antes, nada depois. Apenas um forte vento provocado por suas constantes nadadas nas águas. Esta era a única diversão da época. Cansaram de concorrer entre si quem chegaria mais rápido do Oriente ao Ocidente. Até que descobriram a hidroginástica como terapia para suas recorrentes câimbras. Era só parar, como foi observado, que o próprio movimento dos oceanos lhes curava as feridas. Gostaram tanto da atividade que dali não quiseram mais sair. Perderam, então, sua capacidade criativa, e viram um enorme abismo surgir logo ali. As trevas ficavam cada vez mais assustadoras. Ninguém suportava outro mergulho, que soava sarcástico e até leviano. Não havia outra saída senão abrir a boca até então silenciosa para pronunciar as palavras criadoras. Essa idéia de falar não agradava muito àquele persistente sentimento conservador de manter as coisas do mesmo jeito, mas no fundo o desejo de arriscar nunca foi deixado de lado, sobretudo por incitar seus instintos mais juvenis, dos quais todos sentiam saudade nesse momento de crise. Venceu a juventude, venceu a inovação, venceu a criatividade — talvez, é verdade, lá na frente alguém vá dizer: «Não falei; era melhor não ter feito tudo isso». Todo mundo tinha consciência de que poderiam se arrepender de sua decisão, sendo julgados por si mesmos, porém nunca um tiro no pé foi tão necessário.
Um abraço.
Felipe, a rigor, comunidade com mais de três ou quatro pessoas constitui uma abstração - uma despersonalização. NECESSARIAMENTE.
Receita para "comunidade" - uma idéia, uma fé, uma canção, uma liturgia, um tabuleiro, peças iguais, movimentos iguais, falas iguais, tudo igual - com a "mesa" bancando as fichas.
O desafio é constituir uma comunidade onde cada pensamento, cada pessoa, sabe-se autônomo, igual, superior e inferior ao outro, ao mesmo tempo. Uma comunidade de homens (e mulheres!) não-comunitários.
A figura de uma fé normativa, de um líder carismático (?), de uma doutrina unificadora, isso tem cheiro de Idade Média - não é por outra razão que ouvi que "Teologia" (a Teologia é medieval!) só se faz aí - digamos de outra forma: onde se fizer Teologia (mesmo essa de metáfora, que, equivocadamente, disfuncionalmente, o discurso promotor quer fazer ser crido como diferente da outra, dogmática, mas é tudo a mesma coisa), repito, onde quer que essa Teologia seja praticada, "pessoas" desaparecem e surge a "comunidade". Não-pessoas entregues à direção de outra não-pessoa...
O conceito de pessoa desaparece aí. O conceito de liberdade, desaparece aí. A "comunidade" é uma "super-pessoa", a que toda pessoa tem por obrigação "grudar", colada e calada, assumindo, como seu, o ser desse não-humano.
Bem, isso é o que fizemos ser a comunidade. Ela nasceu assim, pela mão dos primeiros parteiros cristãos, todos, sem exceção, adeptos do platonismo heterônomo, da hierocracia sacerdotal, ainda que disfarçada em "sacerdócio universal". O DNA de nossas comunidades é o do auto-aniquilamento aos pés de "Deus" - o crime é que "Deus", aí, não passa de Tradição, manejada politicamente por homens (e, cada vez mais, também mulheres!) muito conscientes do que fazem.
Compreendo porque você consegue enxergar mais seu conceito de comunidade fora da "comunidade" - é que dentro da "comunidade", você não encontra pessoas que sabem que são pessoas - encontra pedaços de uma coisa, encontra "ovelhas" de um "pastor", encontra desumanização, heteronomia: o maior desafio de um cura-d'almas de que me orgulharia é o parto: fazer nascer, de dentro delas, as pessoas que dormem nos corpos da comunidade. O pastorado que conheço canta cantigas de ninar - e chama a esse berço eterno "comunidade".
Quem quer comunidade de gente, precisa encontrar, primeiro, essa gente - mas moldá-la, filtrá-la, o preço é despersonalizá-la.
É pena. Lamento porfundamente que as "cabeças" (que se julgam) mais pensantes dentre nós prefiram a prestidigitação discursiva, o malabarismo retórico e filosófico - a isso chama-se "Teologia" - para a manutenção do mesmo, à custa de um disfuncional discurso de diferença... Lamentável.
Mas é só o que eu penso. Eventualmente, esteja errado...
O que acha?
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