1. Penso que a primeira pessoa que interpretou a morte de Jesus de Nazaré a partir do modelo/conceito do cordeiro sacrificial do templo de Jerusalém inventou o Cristianismo. A partir daí, com a "trilha" aberta, o "bonde" teve de seguir aquilo que Morin chama de "ecologia da ação", um caminho determinado, caminho esse que a escolha da "metáfora" pré-determinou: o cordeiro, por exemplo, deve ser perfeito e sem mancha, o que, em termos psicológicos, digo, teológicos, deve significar sem pecado. Daí derivaria toda uma Cristologia e, conseqüentemente, uma Soteriologia já milenares. "Em tudo foi tentado, mas sem pecado...".
2. Não pretendo refletir sobre isso. Antes, gostaria apenas de chamar atenção para uma cena do Evangelho de Lucas, um aparentemente "detalhe" que teria passado "despercebido" pelo teólogo inaugurador da teologia do sacrifício substitutivo de Cristo. Trata-se da cena de "apresentação" de Jesus no Templo, conforme o ritual Levítico imposto às parturientes, que Lucas introduz assim: "quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jersualém, a fim de apresentá-lo ao Senhor" (Lc 2,22 - BJ). A Bíblia de Jerusalém aponta para Lv 12,1-8. Lá, descobre-se tratar-se da Lei do Parto: meninas tornam a mãe mais impura do que meninos, mas, não obstante, meninos também tornam a mãe impura. A rigor, não se trata objetivamente do menino ou da menina, há, certamente, uma questão de gênero, aí, mas a "impureza", o "pecado", o que de "imundo" se quer dizer haver aí, e haver a ponto de contaminar mãe e filho/a é o "sangue" da mãe - que serve igualmente de contaminação cultual em Lv 15, texto certamente retrabalhado pelo sacerdócio de Jerusalém.
3. Ora, se Maria viu-se obrigada à prática ritual da purificação do "pecado", já que ela e o menino foram contaminados pelo sangue do parto - e Lucas é preciso: "a purificação deles" - decorre daí que o menino, sujo que fora pelo sangue da mãe, torna-se, ainda que menos relativamente à menina, tão impuro quanto a mãe. Isso não deveria significar, portanto, que, para a lógica teológico/ritual, para a metáfora do "cordeiro imaculado", há, aí, uma "mancha" indelével?
4. A Cristologia, contudo, a partir do momento que inicia sua caminhada, que toma seu "partido", não olha mais para o desinteressante, mas escolhe apenas o que lhe é de interesse. O que nos traz aos dias atuais, em que se vai ensaiando, cada vez mais amiúde, um discurso de "feminização" do "Espírito Santo", por meio de duas operações dignas de prestidigitadores. Primeiro, transformar ruah, na Bíblia Hebraica, o "espírito/vento/sopro" de Yahweh ("espírito" será, mesmo, uma boa tradução?), na Terceira Pessoa da Trindade. Em segundo lugar, asseverando-se que o gênero feminino da palavra hebraica ruah aponta para a definição do gênero do "ser" por ela designado - ruah vai-se tornando feminina...
5. Longe de mim criar dificuldades para os malabarismos teológicos de encomenda, mas penso que resulta um tanto desconcertante recordarmos, em pleno Natal, Maria sendo fecundada por... bem, um Espírito Santo feminino... O presépio armado, a criança puxa a perna do pai e pergunta: Mas, Pai, O Espírito Santo não é mulher? Jesus, então, teve duas mães? Que presépio surrealista vamos construindo: "reis" magos visitando um menino Jesus sujo do sangue "impuro" da mãe, fecundada que fora por uma fêmea... Não me parece que os Evangelistas haviam se dado conta da questão de gênero de ruah. No entanto, como não entendiam muito de exegese mesmo, quem sabe não estamos em melhores condições de analisar o sexo do vento do que eles, não...?
6. Ironia à parte, sei que todo esse esforço traduz uma teleologia aparentemente justificável - tanto que, se me lerem, sentir-se-ão tentados a me odiar com ódeio religoso (só os religiosos sabem, verdadeiramente, odiar, porque o verdadeiro ódio é o ódio religioso - só Deus sabe, efetivamente, odiar) -: exportar para dentro do mito a representação de gênero: uma Trindade sem mulheres é lá uma coisa um tanto descabida para uma humanidade de duplo sexo (e sabe-se lá quantos gêneros). Todavia, talvez se esteja, assim, afundando cada vez mais na lama das argumentações forçadas.
7. O artigo de Croatto, aquele, sobre Asherah, parece-me mais realista. Nega a dessexualização de "Deus", argumentando, corretamente, pela necessidade de representação da "Deusa", com o que ele defende a recuperação de Asherah. Ora, muito mais útil para a tarefa a que me referi é essa denúncia do "assassinato" da deusa do que a tentativa forçada de feminização do vento hebraico.
8. Por último, insisto: pobre do povo cujos líderes procuram "salvar" atolando-o no mito, fundamentando-o na metáfora heterônoma, ensinando-o que está fora dele a razão e o fundamento. Se, eventualmente, arranacam-lhe uma algema ao calcanhar, deixam lá três mil grilhões... Com tal presente, o Natal está completo!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Não pretendo refletir sobre isso. Antes, gostaria apenas de chamar atenção para uma cena do Evangelho de Lucas, um aparentemente "detalhe" que teria passado "despercebido" pelo teólogo inaugurador da teologia do sacrifício substitutivo de Cristo. Trata-se da cena de "apresentação" de Jesus no Templo, conforme o ritual Levítico imposto às parturientes, que Lucas introduz assim: "quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jersualém, a fim de apresentá-lo ao Senhor" (Lc 2,22 - BJ). A Bíblia de Jerusalém aponta para Lv 12,1-8. Lá, descobre-se tratar-se da Lei do Parto: meninas tornam a mãe mais impura do que meninos, mas, não obstante, meninos também tornam a mãe impura. A rigor, não se trata objetivamente do menino ou da menina, há, certamente, uma questão de gênero, aí, mas a "impureza", o "pecado", o que de "imundo" se quer dizer haver aí, e haver a ponto de contaminar mãe e filho/a é o "sangue" da mãe - que serve igualmente de contaminação cultual em Lv 15, texto certamente retrabalhado pelo sacerdócio de Jerusalém.
3. Ora, se Maria viu-se obrigada à prática ritual da purificação do "pecado", já que ela e o menino foram contaminados pelo sangue do parto - e Lucas é preciso: "a purificação deles" - decorre daí que o menino, sujo que fora pelo sangue da mãe, torna-se, ainda que menos relativamente à menina, tão impuro quanto a mãe. Isso não deveria significar, portanto, que, para a lógica teológico/ritual, para a metáfora do "cordeiro imaculado", há, aí, uma "mancha" indelével?
4. A Cristologia, contudo, a partir do momento que inicia sua caminhada, que toma seu "partido", não olha mais para o desinteressante, mas escolhe apenas o que lhe é de interesse. O que nos traz aos dias atuais, em que se vai ensaiando, cada vez mais amiúde, um discurso de "feminização" do "Espírito Santo", por meio de duas operações dignas de prestidigitadores. Primeiro, transformar ruah, na Bíblia Hebraica, o "espírito/vento/sopro" de Yahweh ("espírito" será, mesmo, uma boa tradução?), na Terceira Pessoa da Trindade. Em segundo lugar, asseverando-se que o gênero feminino da palavra hebraica ruah aponta para a definição do gênero do "ser" por ela designado - ruah vai-se tornando feminina...
5. Longe de mim criar dificuldades para os malabarismos teológicos de encomenda, mas penso que resulta um tanto desconcertante recordarmos, em pleno Natal, Maria sendo fecundada por... bem, um Espírito Santo feminino... O presépio armado, a criança puxa a perna do pai e pergunta: Mas, Pai, O Espírito Santo não é mulher? Jesus, então, teve duas mães? Que presépio surrealista vamos construindo: "reis" magos visitando um menino Jesus sujo do sangue "impuro" da mãe, fecundada que fora por uma fêmea... Não me parece que os Evangelistas haviam se dado conta da questão de gênero de ruah. No entanto, como não entendiam muito de exegese mesmo, quem sabe não estamos em melhores condições de analisar o sexo do vento do que eles, não...?
6. Ironia à parte, sei que todo esse esforço traduz uma teleologia aparentemente justificável - tanto que, se me lerem, sentir-se-ão tentados a me odiar com ódeio religoso (só os religiosos sabem, verdadeiramente, odiar, porque o verdadeiro ódio é o ódio religioso - só Deus sabe, efetivamente, odiar) -: exportar para dentro do mito a representação de gênero: uma Trindade sem mulheres é lá uma coisa um tanto descabida para uma humanidade de duplo sexo (e sabe-se lá quantos gêneros). Todavia, talvez se esteja, assim, afundando cada vez mais na lama das argumentações forçadas.
7. O artigo de Croatto, aquele, sobre Asherah, parece-me mais realista. Nega a dessexualização de "Deus", argumentando, corretamente, pela necessidade de representação da "Deusa", com o que ele defende a recuperação de Asherah. Ora, muito mais útil para a tarefa a que me referi é essa denúncia do "assassinato" da deusa do que a tentativa forçada de feminização do vento hebraico.
8. Por último, insisto: pobre do povo cujos líderes procuram "salvar" atolando-o no mito, fundamentando-o na metáfora heterônoma, ensinando-o que está fora dele a razão e o fundamento. Se, eventualmente, arranacam-lhe uma algema ao calcanhar, deixam lá três mil grilhões... Com tal presente, o Natal está completo!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário