1. Meu amigo Haroldo menciona a trégua... mas dá um tiro para o alto. E eu, que havia informado aos meus combatentes que tinham dois ou três dias para o descanso (não foi muito bem recebida entre eles a informação), vejo-me como que obrigado a revidar com um ou dois disparos. Haroldo, agüenta o tranco...
2. [Antes, porém, uma ressalva - nada, absolutamente nada de minhas intervenções, que se concentram no campo da epistemologia e da ética/política (a heurística não se dá no diálogo, mas na pesquisa - diálogo é política, e se faz com ética), exige de terceiros o que, eventualmente, não seria exigido de mim mesmo. Tudo em minha fala vale para terceiros - tanto quanto para mim. Minha fala, meus argumentos, minhas idéias - tudo está sujeito, igualmente, às questões de fundo que proponho. A rigor, meu interesse fundamental é: a condição de possibilidade do discurso, sua "eidética" sistuada, sua condição hermenêutica, seus critérios de "verdade"].
3. Haroldo, mais uma vez, implica - terá razão? - com a distinção teórico-metodológica "tradição" versus "Tradição". Tentarei contornar a colina, e apontar (como sugere Buber) pelo franco setentrional. Usarei um citado de Morin, Para Sair do Século XX, leitura, a meu ver, indispensável - se bem que há multidões (na teologia, então!) em plena Idade Média... Mas talvez se possa saltar direto para o século XXI, se Barth deixar...
3.1 "Eu quase poderia formular esta lei psicossocial: uma convicção bem arraigada destrói a informação que a desmente.
3.2 Seria necessário um livro inteiro para mostrar como se chega a não ver e não saber. Com efeito, o que age em nós, ao mesmo tempo obscura e extralucidamente, é a vontade de impedir que a informação atinja a ideologia. Então, ela desvia a informação, isto é, desvia-se dela. A ideologia provoca a explosão da informação ('besteira! mentira! calúnia!') para que a informação não a faça explodir.
3.3 O que é uma ideologia do ponto de vista informacional? É um sistema de idéias feito para controlar, acolher, rejeitar a informação. Se a ideologia é teoria, ela é, em princípio, aberta à informação que não é conforme a ela, que a pode questionar. Se é doutrina, ela é, em princípio, fechada a toda informação não-conforme. A ideologia política é muito mais doutrina do que teoria. Nesse ponto, chegamos ao problema capital: a relação repulsiva e potencialmente desintegradora entre informação e ideologia política. É pelo fato de que a informação é um explosivo virtual para a ideologia, que esta necessita manter uma relação opressora e repressora em relação à informação" (p. 44-45).
4. Adiante, Morin volta à carga: "uma ideologia baseia-se numa teoria (...) Uma teoria que se fecha para o real torna-se doutrina" (p. 74). Mais: a ideologia, tornada doutrina, é "capaz de coagir o real e até de torná-lo escravo".
5. Morin avança. Serve-se das leis da termodinâmica, aplicando-as ao conceito de sistema de informação: "todo sistema, inclusive o de idéias, tende, com o tempo, a degradar-se, corromper-se, desintegrar-se. Contra essa entropia crescente, ele pode lutar pelo calor, isto é, pela atividade permanente de auto-revisão e auto-reorganização, atráves do intercâmbio com o mundo exterior (...) [Todavia] essa abertura do sistema, ao invés de mantê-lo e regenerá-lo, acelera e aumenta sua degenerescência. Há outro meio para que um sistema de idéias possa proteger-se contra a corrupção. Consiste em fechar-se e petrificar-se. Enquanto se pode chamar de teoria o sistema de idéias aberto, pode-se chamar de doutrina o sistema de idéias fechado" (p. 92).
6. Pois bem, Haroldo, penso que, aí, disponho de material suficiente para avançar meus argumentos. Disse que a diferença entre "tradição" e "Tradição" é que a primeira é medium. Ela não é nem teoria, nem doutrina - ela é um nicho ecológico, onde vivem tanto uma quanto a outra. Enquanto nicho ecológico, faz-se constituir de diversos sistemas de informação intercomunicantes, eventualmente conflituosos, mas, sobretudo, dialogais. Quando um desses sistemas de informação torna-se suficentemente megalomaníaco para cogitar do controle de todo o nicho ecológico, surge o que estou chamando de "Tradição".
7. Usemos, agora, os citados de Morin. A Tradição é uma sistema doutrinário. Ela é fechada ao real, é avessa, terrivelmente avessa a toda e qualquer informação que a contrarie. Ela é racionalizadora, porque, a partir de seu núcleo doutrinário, seleciona as informações admissíveis das inadmissíveis - o critério, você sabe, é político. A atitude geral de cada elemento do sistema (mas, que bom!, sempre se pode "despertar") pode ser tomada a partir da citação de Morin (cf. acima § 3.1 e 3.2). O sistema doutrinário fechado, a Tradição, não apenas despreza a informação - ele, desde sempre, sabe que informação é necessário manter fora de suas fronteiras (ilustrações: a orientação dA República para que os "poetas vagabundos" sejam enxotados da cidade, porque trazem informações estrangeiras; a resposta de Menocchio aos seus inquisidores, acusando-os de não quererem que ele, Menocchio, viesse a saber o que eles sabiam (cf. O Queijo e os Vermes); as três insistências de Judas, a epístola canônica, asseverando aos destinatários da carta ser seu dever lutar pela "fé" que haviam recebido definitivamente [cf. v. 3, 5 e 17 - "fé", aí, vê-se, é doutrina]; ainda, o capítulo 4 de 1 Jo, que ensina a distinguir o "espírito", isto é, a doutrina, de Deus da do anticristo).
8. Não se trata de uma desgraça da História do Cristianismo, apenas. Depois que a civilização ocidental livrou-se do controle (direto) dele, inventou sistemas tão fechados quanto aquele do qual se libertara (Morin fala longamente sobre o comunismo histórico soviético, suas frustrações como marxista, sua crítica marxista ao modelo histórico). No entanto, interessa-me diretamente a Tradição cristã, porque sou duas vezes filho dela - por ser ocidental e por ter-me convertido ao evangelho batista: é minha luta pessoal enfrentá-la - não no mundo, porque abandonei as idéias brancaleônicas, quixotescas e proféticas, mas em meu meio metro quadrado (a Peroratio vem quem quiser). No fundo, é necessário que eu me cerque de toda crítica, porque há um mar de doutrina à minha volta, o "evangelho" está se tornando moda no Brasil, ver TV vai-se tornando impossível, e a República, mais cedo ou mais tarde, sentirá a força dessa fé (a menos que o Poder faça acordos evangélicos, e os bois passem a pastar em pastos negociados... Triste briga Globo versus Record).
9. Vejo com absoluta preocupação - e um quê de sarcasmo - os movimentos de elaboração de uma "teologia de recorte metafórico". É a maneira política de manter-se tudo conforme está, de fazer-se de "bom" e poder criticar os "maus", de separar-se, conquanto se manipule as mesmas palavras, os mesmos discursos, os mesmos ritos, a mesma fé. Ora, Haroldo, essa fé rejeita toda e qualquer informação que lhe retifique: seja a fé fundamentalista, seja a evangelical (evangelicais não se consideram fundamentalistas, e ainda criticam os que, a seus olhos, são), seja evangelical-metafórico, nenhum desses sistemas deixa-se contaminar por nada que venha de fora - para que, me diga, servem, efetivamente, verdadeiramente, conseqüentemente, as Ciências Humanas nos cursos de teologia? Para dar a eles uma aparência de "moderno"? Finge-se que se aprende, finge-se que se tomam informações - mas nada, selecionam-se conteúdos, e tudo permanece exatamente onde está. Tradição! Já lhe falei que a disciplina mais libertadora de minha Gradução em Teologia foi Psicologia da Religião? Ah, sim, ali a informação atingiu-me o centro do córtex - acabou ali o feitiço... Feuerbach já encontrou a casa pronta para sua reforma. E, que maravilha, a informação me veio dentro da Tradição, que pode até querer a eterna vigília, como o quis o Estruturalismo, mas cedo ou tarde cochila.
10. Se vivêssemos, mesmo, numa tradição cristã, em lugar dessa Tradição cristã que aí está, meu amigo Haroldo, teríamos rido de Nietzsche quando ele disse tudo quanto, procedentemente disse, porque teríamos nos surpreendido de que ele estivesse dizendo o óbvio tão tarde. Perdemos o bonde com Lutero, perdemos com Barth e vamos perder de novo. Salvo se o que Morin chama de ecologia da ação fizer das suas e, conquanto todo um sistema planetário trabalhe para o fechamento, o trinco, de alguma maneira se rompa, e o leite se derrame.
11. Olha, aqui, Haroldo, esses meus pés - não vês que estão sujos, irremediavelmente sujos, do leite que derramei?
12. É muito bom dialogar com você, Haroldo. Até aqui, entre mortos e feridos, salvamos-nos os dois (Jimmy, percebes que já vou deixando você à margem?).
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. [Antes, porém, uma ressalva - nada, absolutamente nada de minhas intervenções, que se concentram no campo da epistemologia e da ética/política (a heurística não se dá no diálogo, mas na pesquisa - diálogo é política, e se faz com ética), exige de terceiros o que, eventualmente, não seria exigido de mim mesmo. Tudo em minha fala vale para terceiros - tanto quanto para mim. Minha fala, meus argumentos, minhas idéias - tudo está sujeito, igualmente, às questões de fundo que proponho. A rigor, meu interesse fundamental é: a condição de possibilidade do discurso, sua "eidética" sistuada, sua condição hermenêutica, seus critérios de "verdade"].
3. Haroldo, mais uma vez, implica - terá razão? - com a distinção teórico-metodológica "tradição" versus "Tradição". Tentarei contornar a colina, e apontar (como sugere Buber) pelo franco setentrional. Usarei um citado de Morin, Para Sair do Século XX, leitura, a meu ver, indispensável - se bem que há multidões (na teologia, então!) em plena Idade Média... Mas talvez se possa saltar direto para o século XXI, se Barth deixar...
3.1 "Eu quase poderia formular esta lei psicossocial: uma convicção bem arraigada destrói a informação que a desmente.
3.2 Seria necessário um livro inteiro para mostrar como se chega a não ver e não saber. Com efeito, o que age em nós, ao mesmo tempo obscura e extralucidamente, é a vontade de impedir que a informação atinja a ideologia. Então, ela desvia a informação, isto é, desvia-se dela. A ideologia provoca a explosão da informação ('besteira! mentira! calúnia!') para que a informação não a faça explodir.
3.3 O que é uma ideologia do ponto de vista informacional? É um sistema de idéias feito para controlar, acolher, rejeitar a informação. Se a ideologia é teoria, ela é, em princípio, aberta à informação que não é conforme a ela, que a pode questionar. Se é doutrina, ela é, em princípio, fechada a toda informação não-conforme. A ideologia política é muito mais doutrina do que teoria. Nesse ponto, chegamos ao problema capital: a relação repulsiva e potencialmente desintegradora entre informação e ideologia política. É pelo fato de que a informação é um explosivo virtual para a ideologia, que esta necessita manter uma relação opressora e repressora em relação à informação" (p. 44-45).
4. Adiante, Morin volta à carga: "uma ideologia baseia-se numa teoria (...) Uma teoria que se fecha para o real torna-se doutrina" (p. 74). Mais: a ideologia, tornada doutrina, é "capaz de coagir o real e até de torná-lo escravo".
5. Morin avança. Serve-se das leis da termodinâmica, aplicando-as ao conceito de sistema de informação: "todo sistema, inclusive o de idéias, tende, com o tempo, a degradar-se, corromper-se, desintegrar-se. Contra essa entropia crescente, ele pode lutar pelo calor, isto é, pela atividade permanente de auto-revisão e auto-reorganização, atráves do intercâmbio com o mundo exterior (...) [Todavia] essa abertura do sistema, ao invés de mantê-lo e regenerá-lo, acelera e aumenta sua degenerescência. Há outro meio para que um sistema de idéias possa proteger-se contra a corrupção. Consiste em fechar-se e petrificar-se. Enquanto se pode chamar de teoria o sistema de idéias aberto, pode-se chamar de doutrina o sistema de idéias fechado" (p. 92).
6. Pois bem, Haroldo, penso que, aí, disponho de material suficiente para avançar meus argumentos. Disse que a diferença entre "tradição" e "Tradição" é que a primeira é medium. Ela não é nem teoria, nem doutrina - ela é um nicho ecológico, onde vivem tanto uma quanto a outra. Enquanto nicho ecológico, faz-se constituir de diversos sistemas de informação intercomunicantes, eventualmente conflituosos, mas, sobretudo, dialogais. Quando um desses sistemas de informação torna-se suficentemente megalomaníaco para cogitar do controle de todo o nicho ecológico, surge o que estou chamando de "Tradição".
7. Usemos, agora, os citados de Morin. A Tradição é uma sistema doutrinário. Ela é fechada ao real, é avessa, terrivelmente avessa a toda e qualquer informação que a contrarie. Ela é racionalizadora, porque, a partir de seu núcleo doutrinário, seleciona as informações admissíveis das inadmissíveis - o critério, você sabe, é político. A atitude geral de cada elemento do sistema (mas, que bom!, sempre se pode "despertar") pode ser tomada a partir da citação de Morin (cf. acima § 3.1 e 3.2). O sistema doutrinário fechado, a Tradição, não apenas despreza a informação - ele, desde sempre, sabe que informação é necessário manter fora de suas fronteiras (ilustrações: a orientação dA República para que os "poetas vagabundos" sejam enxotados da cidade, porque trazem informações estrangeiras; a resposta de Menocchio aos seus inquisidores, acusando-os de não quererem que ele, Menocchio, viesse a saber o que eles sabiam (cf. O Queijo e os Vermes); as três insistências de Judas, a epístola canônica, asseverando aos destinatários da carta ser seu dever lutar pela "fé" que haviam recebido definitivamente [cf. v. 3, 5 e 17 - "fé", aí, vê-se, é doutrina]; ainda, o capítulo 4 de 1 Jo, que ensina a distinguir o "espírito", isto é, a doutrina, de Deus da do anticristo).
8. Não se trata de uma desgraça da História do Cristianismo, apenas. Depois que a civilização ocidental livrou-se do controle (direto) dele, inventou sistemas tão fechados quanto aquele do qual se libertara (Morin fala longamente sobre o comunismo histórico soviético, suas frustrações como marxista, sua crítica marxista ao modelo histórico). No entanto, interessa-me diretamente a Tradição cristã, porque sou duas vezes filho dela - por ser ocidental e por ter-me convertido ao evangelho batista: é minha luta pessoal enfrentá-la - não no mundo, porque abandonei as idéias brancaleônicas, quixotescas e proféticas, mas em meu meio metro quadrado (a Peroratio vem quem quiser). No fundo, é necessário que eu me cerque de toda crítica, porque há um mar de doutrina à minha volta, o "evangelho" está se tornando moda no Brasil, ver TV vai-se tornando impossível, e a República, mais cedo ou mais tarde, sentirá a força dessa fé (a menos que o Poder faça acordos evangélicos, e os bois passem a pastar em pastos negociados... Triste briga Globo versus Record).
9. Vejo com absoluta preocupação - e um quê de sarcasmo - os movimentos de elaboração de uma "teologia de recorte metafórico". É a maneira política de manter-se tudo conforme está, de fazer-se de "bom" e poder criticar os "maus", de separar-se, conquanto se manipule as mesmas palavras, os mesmos discursos, os mesmos ritos, a mesma fé. Ora, Haroldo, essa fé rejeita toda e qualquer informação que lhe retifique: seja a fé fundamentalista, seja a evangelical (evangelicais não se consideram fundamentalistas, e ainda criticam os que, a seus olhos, são), seja evangelical-metafórico, nenhum desses sistemas deixa-se contaminar por nada que venha de fora - para que, me diga, servem, efetivamente, verdadeiramente, conseqüentemente, as Ciências Humanas nos cursos de teologia? Para dar a eles uma aparência de "moderno"? Finge-se que se aprende, finge-se que se tomam informações - mas nada, selecionam-se conteúdos, e tudo permanece exatamente onde está. Tradição! Já lhe falei que a disciplina mais libertadora de minha Gradução em Teologia foi Psicologia da Religião? Ah, sim, ali a informação atingiu-me o centro do córtex - acabou ali o feitiço... Feuerbach já encontrou a casa pronta para sua reforma. E, que maravilha, a informação me veio dentro da Tradição, que pode até querer a eterna vigília, como o quis o Estruturalismo, mas cedo ou tarde cochila.
10. Se vivêssemos, mesmo, numa tradição cristã, em lugar dessa Tradição cristã que aí está, meu amigo Haroldo, teríamos rido de Nietzsche quando ele disse tudo quanto, procedentemente disse, porque teríamos nos surpreendido de que ele estivesse dizendo o óbvio tão tarde. Perdemos o bonde com Lutero, perdemos com Barth e vamos perder de novo. Salvo se o que Morin chama de ecologia da ação fizer das suas e, conquanto todo um sistema planetário trabalhe para o fechamento, o trinco, de alguma maneira se rompa, e o leite se derrame.
11. Olha, aqui, Haroldo, esses meus pés - não vês que estão sujos, irremediavelmente sujos, do leite que derramei?
12. É muito bom dialogar com você, Haroldo. Até aqui, entre mortos e feridos, salvamos-nos os dois (Jimmy, percebes que já vou deixando você à margem?).
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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