sexta-feira, 28 de novembro de 2008

(2008/74) Eventualmente, as palavras...


1. De Lévinas para Nietzsche - que salto! Eis um extrato de Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral:

1.1 "(...) Quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar" (em NIETZSCHE, Os Pensadores, v. I, p. 31).

2. E não apenas o filósofo. Eis que a Filosofia parece ter vergonha de sua origem. Nasceu Teologia, permaneceu Teologia por séculos (quase três milênios), e, recentemente, porque saiu de casa, sequer menciona o endereço da família. Platão é filósofo - ensinam-nos nos livros de Filosofia. Não, não era bem filósofo, não - certamente não no sentido moderno. Era teólogo, e enquanto tal, ele e os seus contemporâneos de Atenas, ele e os pré-socráticos, todos, pensavam teologicamente, logo, ontologicamente. Ali pensou-se o pensamento - teologicamente.

3. O conceito de "coroa da criação" saiu exatamente dessa síndrome a que Nietzsche se refere. Lembro-me da escola, quando criança. Para que serve a abelha? Para nos dar mel. E a vaca? Para nos dar leite, couro e carne. As árvores? Frutos e sombra. Parabéns. E a tênia? Ah, a tênia é um parasita! Fôssemos honestos, ecologicamente falando, deveríamos ensinar que nós servimos de casa e comida para a tênia, e tratá-la retoricamente como às abelhas. Mas, como somos o centro do Universo, classificamos tudo à luz de nossa posição central - coisas úteis e inúteis, boas e más.

4. Mas isso deriva do pensamento. Pensamento, contudo, que é tão complexo, que pode flagrar-se fazendo isso, situando-se retoricamente no centro. Nietzsche o viu. Podemos ver, também. E é quando se depara com essa nudez absoluta, quando se sorve essa gota de fel até o fim, até o amargo da língua, até que o esôfago queime a ácido, então não somos capazes de descentralizarmo-nos noologicamente. Se é necessário fazê-lo? Bem, e quem o exigiria? Que Força? Que Lei? Que Imperativo? Nenhum. Quer ficar no centro? Fica. Quer sair? Sai. Não é que não haja conseqüências, há. O que não há é imperativo. Talvez Kant tenha dado ópio a quem precisava dele...

5. Como os escaladores de paredes, que, saltando de uma protuberância até a outra, buscam o topo, Lévinas quer saltar da minha cara até a cara de Deus, como se um fosse o fundamento do outro. Pode? Pode. Mas isso, que é, senão o transbordamento do odre a que Nietzsche se refere, a que Feuerbach se referiu, a projeção, a absoluta incapacidade de olhar para sua própria solidão universal, de encarar, de frente, que não apenas a Terra flutua no Nada, mas, nela e com ela, cada um de nós, só?

6. Talvez para isso tenhamos criado nossos amigos das estrelas. Aposto que não imaginávamos que eles se tornariam guerreiros cruéis. Mas assim somos nós, não somos?, bocas que escarram e beijam, mãos que acariciam e estripam, corpos que amam e estupram. Os deuses são bem iguais a nós. De nós é possível esperarmos tudo. Até o recalque da realidade áspera da emergência humana. Não há solidão maior, mais profunda, mais dolorida, do que dar de cara com Nietzsche.

7. Em De Deus que vem à Idéia, Lévinas, volta e meia, reclama dele. Isso nos anos 70. Fico imaginando o quanto Nietzsche não gerou de ira e desagrado, enquanto vivia.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio