segunda-feira, 24 de novembro de 2008

(2008/60) Da crítica e da face


1. Rubem Alves explicou com uma metáfora muito simples - a do labirinto. É como se o pesquisador/cientista (escolha o termo de sua preferência) estivesse sempre em um labirinto. Claro, do qual ele nunca pode sair. Nessa situação, andar pelos longos corredores, escuros, eventualmente úmidos, eis a caminhada da pesquisa/ciência: incerta, provisória, histórica, inexorável. Há, aí, apenas uma certeza - aquela equivalente a dar-se de cara com o muro/a parede. Dentro de um labirinto, quando se dá cara com uma parede, acaba-se de descobrir que se estava no caminho errado - era uma galeria sem saída aquela em que se entrara. Dê meia volta, e recomece a caminhada...

2. Eu não sei como as coisas da epistemologia e da pesquisa/ciência funcionam na cabeça das pessoas. Na minha é assim: se eu aprendo/apreendo um conceito, ele imediatamente passa a circular em meu sangue, a correr em minhas veias. Ora, essa metáfora do labirinto ilustra o fato de que a ciência - o nome como hoje o "conhecimento" sói ser conhecido - vive uma condição insuperável de indemonstrabilidade de fundo. Aqui e ali algumas "demonstrações" podem ser ostentadas - e são mesmo "certas" (cf., entretanto, o teorema de Gödel). No fundo, contudo, naquilo que diz respeito a uma visada geral sobre a vida, aí as coisas ficam muito, muito difíceis. Particularmente no campo das Ciências Humanas, aí então é que as condições de verificação da "verdade" (ou seja, dos "discursos sobre o real) assume complicações enormes.

3. Ora, essa metáfora ensina que, de concreto, só podemos ter certa garantia sobre o "erro". Os acertos são eventualmente indemonstráveis - em sentido rigoroso. Demonstrar o erro de uma afirmação é relativamnte fácil - demonstrar que uma afirmação (que sobreviva à crítica) esteja efetivamente correta já é uma questão epistemológica delicada.

4. Suponhamos que eu faça uma declaração de caráter exegético. Se alguém demonstrar que há um equívoco, digamos, de tradução, a declaração, imediatamente, cai - perde completamente seu valor. Por exemplo, a Teoria da Revolução Campesina, de Gottwald (cf. Tribos de Yahweh) - a despeito de sua "beleza", e malgrado nos ter, a nós latino-americanos, "encantado" por quase três décadas, à luz do resultado das pesquisas arqueológicas de Israel Finkelstein está errada - nem as montanhas de Israel/Judá foram povoadas, num surto, por volta dos séculos XIII/XII (eram-no desde o século XX), nem a cal e o ferro foram introduzidos na Palestina por ocasião do "tempo do êxodo" - estavam já lá desde o século XVIII. Ponto. Isso encerra a questão. O resto é juris esperniandi - salvo, naturalmente, que se demonstre que a pesquisa de Finkelstein está errada.

5. Uma declaração, contudo, que não pode ser - ainda - demonstrada como errada: qual o status dela? Certa? Não - plausível. Uma declaração no campo das Ciências Humanas tem o caráter de plausibilidade, enquanto está "de pé". Se dez pessoas concordam com ela, ela é plausível. Se mil, nada muda. Se um milhão, nem uma gota a mais de "certeza". Se todos os habitantes do planeta concordarem com uma afirmação dessas, nem por isso ela é mais certa do que se apenas uma lhe fiasse crédito. Basta, contudo, que uma pessoa, só uma, mostre e demonstre o "erro" dela, e as demais seis bilhões de almas, das duas uma, ou aceitam o óbvio, ou amargam um fundamentalismo cego.

6. Com esse comentário, gostaria de ilustrar, eventualmente justificar, meu "jeito". Por que sou tão crítico com os artigos que leio - mesmo dos amigos? Por que não há nenhum benefício em passar a mão por cima, nenhum. Precisamos ter em mente o objetivo final da pesquisa, que é aperfeiçoar nossa maneira de ver o mundo e a vida. Apoiar o que um amigo diz, só porque é amigo, não é sério. Falar mal do que um não-amigo diz, só porque é um não-amigo, não é sério. Tento - honestamente - criticar tudo que me vem à mão, seja de amigos, seja de não-amigos. E, quando alguma coisa que me vem à mão, sobrevive à minha hiper-crítica, considero-a um bom rumo para a caminhada.

7. Há pouca coisa que me tenha passado à mão e sobrevivido até a última gota: Edgar Morin é uma jóia raríssima. Imediatamente abaixo, colocaria Karl-Otto Apel e Carlo Ginzburg. A partir daí, Marcel Detienne vai se tornando um "campanheiro". Mircea Eliade - sem comentários. A lista, claro, não se esgota aí, mas esses são especiais. Muito especiais. Uma fotografia de minhas hemoglobinas revelaria parte da alma deles... que eu digeri, antropofagicamente...

8. Gostaria de deixar claro para meus amigos e eventuais não-amigos que não os critico - critico seus textos. Para quê? Para garantir que eu tenha em mãos algo a que dar crédito - porque, e isso faz toda a diferença: quando alguma coisa que me vem às mãos faz sentido, não duvide, imediatamente ela entra em minha circulação. É seriedade demais, risco demais, para deixar passar alguma coisa que não absolutamente à prova de crítica... Ora, se as próprias Escrituras não estão imunes à minha espada...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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