sexta-feira, 21 de novembro de 2008

(2008/59) Da auto-determinação da nefesh humana


1. Ensaio, arrisco, miro uma hipótese - toda a insistência cripto-normativa, pseudo-hermenêutica, no "valor", no "lugar", no "peso" (kabod - "glória"), da Tradição, da "herança" - insisto, intuo: deve-se ao fato de não se ter saído, ainda, da Idade Média, daquele útero, daquela relação umbilical, daquele "conforto", os vitrais, ah, os vitrais, vejam como a luz do céu desce e atravessa as cores despedaçadas da vida da gente, e rejunta, e remonta tudo à Idéia...

2. Parece, quer dizer, parece-me que ao se cair do alto do ventre da mãe, e dar com a cara na terra, aborreceu-se a tal ponto a terra, a tal ponto a "queda", a tal ponto a sujidade da hyle, a família Carbono, o clã Periódica, sentiu-se tanta saudade, tanta, mas tanta saudade das Míticas Mansões Amnióticas, ao menos, que fosse, do Nada Líquido, que só resta a vingança pequena, a mesquinha irritação cotidiana, aquela, de dizer à vida, que não é ela, absolutamente, quem queremos - mas a morte.

3. Não? Ora, se Ginzburg, em Relações de Força, estabeleceu uma relação de causa e efeito entre a "invenção" européia do Estruturalismo e o peso da culpa européia em face da Segunda Guerra Mundial - onde há estrutura, não há pecado, o que faz do Deus dos calvinista, segundo a segundo, grão a grão, pingando da ampulheta, um cínico e despóstico doente, que castiga no dente a falha da engrenagem, o pecado da máquina -, então se poderia tentar um relação entre qualquer tentativa de desumanização, desubjetivação - de aboliação da teleologia! - uma razão similar: fuga da vida, de si - morte. Na Linguagem, na Tradição, na Metáfora - nem existimos, de fato, nem há existência real. As Maiúsculas parem, de si, a morte dos minúsculos.

4. Quanto a mim, que me cravem no peito todas as minhas culpas - e quantas são! Todas. Rôo-me dia e noite (é minha patologia) pela culpa do passado e do presente, como Prometeu Acorrentado, mas não trocaria essa dor, essa lancinante dor, pela despersonalização - pelo que Aldous Huxley chama de "desejo de autotranscedência vertical". Não, eu não. Não quero ser Deus, nem Nada, nem Tudo, nem Estrutura. Quero ser Eu, perdido e louco e só, incorrigivelmente só, cuja única companheira é a angústia. Minha atitude em face disso é deliciar-me, por meio de todos os sentidos (sim, físicos) com que Cantares abre seu prólogo alguma coisa entre filosófico e libidinoso, e isso apesar da vida, com a vida, deliciar-me com a vida que me vêm na pele de Bel - e eis a vida: pão, vinho e amor... O que nos vem de dentro e por instinto, o que de mais "eu" posso sentir pulsar em "mim".

5. A tradição, nesse caso, é a soma das dores humanas - eventualmente, de suas alegrias (gozem-nas, rápido, que são fortuitas!). Que têm a dizer tantas dores, senão que a vida é dor? São como o trem do subúrbio, onde a "tradição" se desnuda na carne cansada, suada e maltratada da espécie humana - que, eventualmente, podemos disfarçar. Da tradição não me vem, nunca mais, "orientações", "normas", "dogmas", "revelações", "nortes", "dedos", quer apontem uma direção, quer escrevam em tábuas de pedra. Não. Dela vêm-me, apenas, paisagens de risco - pessoas agindo, fazendo, fazendo-se, no risco, perdidas tanto quanto eu, algumas, cientes de sua perdição insuperável, outras, inventando para si quimeras de salvações supra-humanas - tão frágeis que, para que eles próprios se sintam firmes, é preciso que o encanto enfeitice o mundo. Quenosis? Regra número um - se Deus fez-se homem, mesmo, e se não finge de fazer-se o que ele não pode, nunca ser, perdeu-se. Como nós. E, perder-se como nós, não é salvar-nos, é perder-se em nossa perdição, é ser solidário, sem sursis, sem "aparências" de perdição, mas perdição inexorável: levar a sério a encarnação de Deus é, antes de tudo, matá-lo. Permitam-me dizê-lo: Nietzsche viu mais longe do que Paulo, ou, dito em termos teológicos, viu o que Paulo fez.

6. Deus, aquele Deus-armário, do qual se pensava tirar tudo quanto é quinquilharia teológica - teológica?, que tolos fomos, somos: políticas!, seja virada cada peça desse armário e lá se lerá: "MADE IN TRADITION" - precisamente ele está morto. Não para todos, naturalmente, que a Tradição não se fez/faz Tradição à toa. Quando ele me vem na Tradição, rio-me - é minha diverção na dor: pantominas teológicas divertidíssimas. E um Deus-morto, menino caído de entre as pernas da Mãe Encarnação, sujo ainda de sangue e areia, ri-se de meu lado, impaciente de quando chegará a hora dos folguedos da infância, que ele criara ela, primeira, para com ela dar o imprintig das próximas fases...

7. Até ontem era mais fácil viver aí, sem dar-se conta. Mas, miseráveis, os demônios do século XIX quebraram os vitrais, que, remendados, fazem triste figura das alturas góticas e das corres barrocas no medievo: a modernidade foi cruel com as pequenas aspirações divinas dos homens, e não é à toa que inventaram, rápido, uma pós-modernidade, em que sua loucura faz sentido (não, não tente entender mesmo - não há como entender isso! - trata-se de um caso de "racionalidade expressivo-normativa", não, Habermas?).

8. Assim, o que me vem de ontem é testemunho e dor, apenas. Não me diz nada - nem pode - sobre o futuro. Não me desenha nada de obrigatório. Não tem peso suficiente para manter-me os pés no chão. O futuro encontra-se intocado, intocável - nem Deus sabe dele. Posso até desfazê-lo, com o golpe seco da navalha. Mas gosto de imaginar Deus-morto excitadíssimo a esperar ver nascendo, a cada segundo, da vida de cada desgraçado humano, uma gota de pura criação e risco. Vai, Osvaldo, anda, faz logo o que vai fazer que estou doido pra saber...

9. Por isso é-me de uma facilidade aterradora não dar a menor importância para o que o passado pense ter a me dizer de normativo. É engano dele (self deception) - ele acreditava, mesmo, nas invenções que engendrara na vigília! É fraude dele (mitoplastia platônica) - homens há que sempre querem nutrir-se da carne dos outros! Auto-engano ou fraude política, vade retro! Suspeita, prudência, cordura, crítica - eis minha relação com o mar de dor a que se resume o passado da espécie. Eu sou apenas mais um dentre os Homo - mas cada um é, a rigor, o primeiro. Eu - Adão. Bel, Lilith - que até no mito há que se ir a contrapelo...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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