terça-feira, 3 de março de 2020

(2020/011) Por que lemos e não entendemos o que lemos

Sou professor de Hebraico e de Antigo Testamento. O Hebraico que leciono no curso de Teologia não é como o Hebraico dos cursos de Letras (Português - Hebraico). É instrumental: serve para a tradução da Bíblia Hebraica no sentido de constituir esta o Antigo Testamento da Teologia cristã.

Também sou leitor de filósofos. Um dos meus mais adorados era - sim, era - Nietzsche. Deixei de adorá-lo desde que li Domenico Losurdo. Com Losurdo, aprendi que eu estava lendo Nietzsche errado.

O fenômeno da leitura da Bíblia nas igrejas é o mesmo que o da leitura de Nietzsche pelos filósofos do séculos XX, grosso modo. Na Igreja, ninguém lê o Antigo Testamento. O que se faz ali é projetar no Antigo Testamento as doutrinas cristãs. Fazem-no os grandes teólogos e fazem-no as pessoas humildes. Não há, aí, quem de fato leia e entenda o AT, conquanto haja experimentadíssimos teólogos cristãos do Antigo Testamento, tirando de lá as doutrinas de sua fé cristã. Nos bancos das igrejas, ouvindo horas e horas de sermões alegórico-doutrinários, o povo crente aprende a ler errado o Antigo Testamento, porque faz alegoria e acha que está lendo historicamente...

No caso de Nietzsche, ensinaram-nos que ele era um campeão da autonomia e da liberdade. Mentira! Nietzsche tinha para o povo de modo geral um projeto instrumental: a única função das massas é pavimentar com seus corpos a estrada sobre a qual deve passar as rodas do gênio da espécie. Mas a leitura doce e libertária - falsa até a medula - que os filósofos fizeram dele nos encanta, e, encantados, da mesma forma como os crentes dos bancos das igrejas, repetimos nos textos do filósofo a invenção da "recepção", e nos enganamos até o fim.

Por que lemos errado? Porque partimos de um pressuposto normatizado. Quando abrimos os textos - Bíblia, Nietzsche - partimos do pressuposto de que já sabemos o que ali está escrito, e isso porque também entregamos a terceiros nossa autonomia: os pastores assentam o sentido da Bíblia e os filósofos da inocência e da liberdade, o de Nietzsche. Dado que é assim, os olhos percebem que são inúteis e vão descansar. O cérebro percebe que queremos encontrar no texto o que esperamos encontrar no texto e nos dá isso, e só isso. Os mestres nos enganam, e nós passamos a nos enganar a nós mesmos...

Como sair disso? Primeiro, com suspeita. É preciso perguntar se o que nos dizem que esta escrito está escrito mesmo. Veremos que não está. Depois é preciso exercitar os olhos. Nesse caso, Língua Portuguesa (se temos uma boa tradução nas mãos) é fundamental, conquanto, sem a suspeita, ela é inútil. Finalmente, informar ao cérebro que acabou o tempo de pintar as páginas que lemos com a homilia de domingo e as fabulações éticas e estéticas da moda, mas encontrar nelas, doa a quem doer, a carne crua e o sangue, os ossos e o tutano.

Com perseverança e treino, desaprendemos a nos enganar. Pode demorar mais para alguns e menos para outros. Destravados nossos olhos e nosso cérebro, todavia, estamos prontos para, pela primeira vez na vida, ler de fato os textos que - acreditem - nunca jamais lemos...

Malditos todos os mentirosos que nos fizeram mentir para nós mesmos!







OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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