sexta-feira, 10 de abril de 2020

(2020/053) O eixo em torno do qual gira Gênesis 1-11

Gênesis 1-11 é independente de Gênesis 12-50. A colagem das duas seções é posterior à elaboração de cada seção, tendo sido certamente levada a termo por terceiros que não os responsáveis pelas duas.

O eixo em torno do qual gira Gênesis 1-11 se encontra graficamente desenhado. Tal eixo está fincado no chão da narrativa em três lugares: Adão e Eva, Caim e Abel e Noé.

Em Adão e Eva se estabelece um confronto decisivo entre o culto agrário e o culto cruento. Na narrativa, recusa-se o culto agrário, assume-se o culto cruento, e, o que é mais importante, explica-se que a recusa do culto agrário e a determinação de que apenas o culto cruento tem serventia é a declaração de que a culpa pelo pecado só pode ser coberta com sangue. 

A declaração teológica de que apenas com sangue e morte se cobre o pecado não está em Adão e Eva. Ali está a sentença - o pecador certamente morrerá, a disputa entre os dois tipos de culto (Adão e Eva fazem roupas de folhas, a divindade recusa a cobertura e faz roupas de pele) e se institui, em termos de cena, o fato de que aquela sentença de morte pode ser sempre provisoriamente contornada pelo sacrifício expiatório, substitutivo de um animal sacramentalmente executado.

Na passagem de Caim e Abel, aparece metade do motivo de Adão e Eva: o conflito entre os dois tipos de culto. Caim é como Adão e Eva: estes, fabricaram roupas de folhas, aquele oferece à divindade produtos da agricultura. Da mesmíssima forma como a divindade recusa as roupas de folhas do casal, recusa também o culto agrário de seu filho. Pais e filhos devem submeter-se ao mesmo tipo de culto: o de sangue, cruento, no altar. Dos dois temas de Adão e Eva - a divindade não aprova o culto agrário, só o cruento, e o culto cruento é o único que pode adiar indefinidamente a pena de morte pelo pecado), um deles está em Caim e Abel. O outro, está em Noé.

Há duas histórias de criação e duas histórias de dilúvio. As duas de criação foram coladas uma depois da outra, mas as duas do dilúvio foram misturadas uma na outra. Depois de separar as duas, em uma delas, o segundo motivo da narrativa de Adão e Eva, que não está em Caim e Abel, pode ser identificada em detalhes impressionantes em uma das duas narrativas de Noé, justamente a que emprega o mesmo termo para nomear a divindade que é empregado nas duas narrativas anteriores.

De modo resumido, a divindade se arrepende de ter criado as suas criaturas, porque ele considera que elas são más, e as decide matar. Separa uma família e mata todo mundo, enfurecidamente. Os dois termos - arrependimento e fúria - estão no texto hebraico. No final da história, Noé constrói um altar, sacrifica um de cada tipo de animal puro e a fumaça do sacrifício chega até as narinas da divindade arrependida e furiosa. O resultado é que a ira do deus irado é aplacada, ele raciocina assim: minhas criaturas são más, mas toda vez que eu sentir esse cheiro, aceitarei no lugar da morte que elas merecem a morte do animal que agora me aplaca com seu sacrifício.

Pronto. Todo o resto de Gênesis 1-11 gravita em torno desse eixo teológico. Não tenho dúvidas de que Gênesis 1-11 tem a função histórica de assentar a novidade sacerdotal: cada judeu deve ir a Jerusalém para sacrificar lá um animal, para que a divindade o permita viver mais um ano. Os sacerdotes de Jerusalém inventaram isso. Com isso, inventaram o Ocidente inteiro. Gênios. Do mal, mas gênios. Perto deles, nossos pastores de TV são estagiários.






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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